Capítulo 10 - Um Cadáver Inusitado - Parte 4

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Anne nem mesmo o olhou, seguiu tomando seu café como se o marido não estivesse ali. Isso o irritou, mas ele sabia que o momento não era oportuno para perder a calma; portanto, tentou contornar a situação. – Querida, nós precisamos conversar – disse ele, pegando na mão dela. Sem se exaltar, Anne desvencilhou sua mão da dele e olhou-o com um olhar tão gélido quanto o frio que fazia lá fora.

– Se você acha que tem algo a me dizer, pode começar – disse ela, com voz firme. Sua atitude o desconcertou, deixando-o sem ação por alguns instantes. Mostrando-se impaciente, ela continuou: – Bem, já acabei meu café, e se você vai ficar aí apenas me olhando, vou me retirar.

– Tenha calma, Anne – falou ele, servindo-se de um pouco de café. – Eu só quero conversar sobre o ocorrido.

– E está esperando que o outono termine para você começar? – ironizou.

– Se você continuar agindo assim, vai ser difícil ter essa conversa – afirmou ele.

– E como você espera que eu aja depois do que você fez? – questionou ela, dessa vez com um olhar acusador.

– E eu posso saber exatamente o que foi que eu fiz? – ele largou o açucareiro na mesa. – Eu só estava tentando nos proteger!

– Proteger do quê?

– Ora, Anne! Ele invadiu nossa casa!

– Sim! Mas com que propósito? – ela elevou a voz no mesmo tom usado por ele.

– Com o propósito de nos matar, Anne!

– Mentira! – disparou ela. – Ele não veio aqui matar ninguém! Se ele realmente quisesse isso, poderia ter matado a nós dois quando me tomou como refém.

– Não seja boba, Anne. Ele só não nos matou porque, se o tivesse feito, os seguranças o matariam logo a seguir.

Anne calou-se por alguns instantes. Ficou a observar o semblante de George e viu nos olhos dele que ele realmente acreditava no que estava dizendo. Por um momento, ela até mesmo chegou a ponderar aquelas palavras, embora em seu íntimo soubesse que era mentira.

– Tudo que eu vi ontem foi você tentando matá-lo, e não o contrário – afirmou ela. – E para isso, você nem se importou sequer em machucar a mim!

– Você não entende mesmo, não é? – disse ele, com um olhar decepcionado. – Ele tem de pagar pelo que fez com nossa menina.

– É você quem não entende o que está acontecendo, George – disse ela, agora com um tom mais brando. – Isso que você quer fazer não é justiça. É vingança. Algo que, além de não trazer nossa filha de volta, ainda vai acabar com você.

– A única coisa que vai acabar comigo é eu deixar esse assassino livre – disse ele, apertando com força um guardanapo.

– Ouça o que você está dizendo, George – ela assustou-se ao ver a ira nos olhos dele. – Você já não é mais o mesmo. Às vezes eu olho para você e não vejo mais meu marido.

– Eu nunca mais serei o mesmo, Anne – disse ele com tristeza. – A morte de nossa menina me deixou uma ferida que não irá cicatrizar. Agora me diga o que você quer de mim?!

Anne pousou suas mãos sobre as dele e o olhou com ternura. – Vamos seguir nossas vidas, George – os olhos dela estavam marejados. – Agora nós só temos um ao outro e temos de voltar a viver. Precisamos reabrir as portas de nossa casa, trazer a alegria de volta.

– Como? – perguntou ele, confuso.

– Lembra-se da animação de Jessica quando fazíamos as festas à fantasia?

George calou-se por uns instantes, mergulhando nas boas lembranças, e disse: – Lembro sim. Quando pequena, ela nos perturbava até mostrarmos a fantasia que ela usaria.

Anne viu uma lágrima escorrer dos olhos de George e buscou ânimo para dizer: – Pois então, querido, vamos fazer uma festa à fantasia. Tenho certeza de que nossa filha aprovaria isso.

Quando Anne terminou de falar, a expressão de George mudou radicalmente, e ele irrompeu em fúria. – Você está louca? – gritou ele. – Quer dar uma festa à fantasia pra celebrar o quê?

Apesar do susto, Anne manteve-se calma. – Não se trata de uma celebração, querido – falou mansamente. – Seria uma homenagem à nossa filha, uma forma de resgatar a memória dela através daquilo que ela gostava.

Ouvindo aquelas palavras, George começou a se sentir cada vez mais incomodado e levantou-se, interrompendo Anne. – Não há um dia sequer em que eu não pense nela. Todo santo dia eu acordo sabendo que jamais voltarei a ver aquele sorriso, aquela alegria que só ela tinha – disse ele, emocionado. – Portanto, você acha mesmo que eu preciso de uma porcaria de festa à fantasia para me lembrar de nossa menina? – concluiu ele, agora mais exaltado.

Apesar dos modos ríspidos do marido, Anne via claramente a dor impressa nos olhos e nas palavras dele. E isso a fazia sentir-se fracassada; pois, desde a morte da filha, ele nunca mais fora o mesmo. A cada dia, ele se afundava mais na dor que tentava anestesiar com o álcool. E por mais que ela se esforçasse em ajudá-lo, ele repelia todas as suas tentativas.

– Pelo amor de Deus, George! – implorou ela. – Está na hora de você aceitar que nossa menina se foi. Eu não estou pedindo que você a esqueça. Apenas que aceite.

– Eu jamais vou aceitar isso! – gritou ele, virando a mesa com extrema fúria.

Anne levantou-se num sobressalto. Mas, antes que pudesse reagir, George a segurou pelo rosto. – Me solte! – gritou ela, enquanto tentava se desvencilhar.

Porém, George era mais forte e a fez olhar para o móvel. – Olhe para essa maldita cadeira! – bradou ele. – Olhe! Sempre que eu chego a essa sala e olho para ela, eu lembro que, em algum lugar dessa cidade, aquele maldito continua vivo, enquanto nossa filha está morta.

– Me largue, George. Você está me machucando!

Porém, ele não deu ouvidos ao pedido dela e disse em tom inflexível: – Portanto, entenda de uma vez: nossa filha não precisa de nenhuma homenagem. Ela precisa é que a justiça seja feita!

Em lágrimas, Anne conseguiu se soltar e saiu apressada da sala, dizendo: – Você está ficando louco!

George nem mesmo se preocupou em ir atrás da esposa. Apenas ficou ali parado, observando o estrago que ele mesmo havia feito. Ao olhar de novo para a cadeira onde Jessica costumava sentar, um misto de dor e raiva dominou-lhe por completo. Sua respiração ficou acelerada, e suor começou a escorrer por sua testa, enquanto uma sensação de angústia parecia espremer seu peito.

– Não, de novo não! – disse ele, com a voz embargada.

De repente, a sala pareceu encolher à sua volta, como se as paredes estivessem vindo ao seu encontro. E George sentiu uma extrema necessidade de sair dali, não se importando em pisar nos restos de alimentos e nos cacos dos objetos que haviam caído da mesa.

Após subir as escadas o mais rápido que pôde, ele entrou em seu escritório e se jogou no sofá. Estava se sentindo tão sufocado que afrouxou a gravata na esperança de sentir-se melhor. Foi, porém, ao observar as próprias mãos que finalmente entendeu o que estava acontecendo. E tão logo compreendeu, pegou seu celular e discou um dos números da agenda.

– Sou eu – disse ele, ainda observando o tremor da mão que estava desocupada. ­– Vou precisar fazer aquilo de novo!

Sagrada Maldade - Caçada aos MultiplicadoresOnde histórias criam vida. Descubra agora