E se o relógio pudesse girar ao contrário? E se do fim eu pudesse voltar ao começo? Se, ao invés de me despedir e me afastar, eu pudesse retornar ao momento do nosso primeiro beijo? Se, das lágrimas e do distanciamento, eu pudesse regressar àquela sexta-feira de um ano passado, quando meus olhos encontraram os seus pela primeira vez? E se, do medo, eu pudesse voltar ao encantamento? E se, das dúvidas, eu pudesse regressar à certeza? E se, dos "mas" e "poréns", eu pudesse reviver as afirmativas? Se ao início de tudo eu pudesse voltar, mesmo sabendo que o começo um dia se tornaria meio e o meio se tornaria fim, ainda assim, eu voltaria. Voltaria só para poder te amar mais uma vez. Até ter a certeza de que te amei mais do que cabe em uma só vida.
Lá estava eu, sentada na beirada da piscina da nossa casa, refletindo sobre tudo o que passamos. Eu e Victoria já estávamos juntas há dez anos. Casadas há sete. Aos 32 anos, eu estava no auge da minha carreira, mas algo em nossa relação não parecia mais o mesmo. As brigas eram frequentes, e Victoria estava completamente dedicada ao teatro, deixando pouco tempo para nossa vida social. E ali, no meio disso tudo, eu me sentia ímpar, deslocada, como se algo estivesse se perdendo entre nós.
Lembro-me de como tudo começou. No início, eu estava um pouco desapegada, sem saber ao certo onde aquilo nos levaria. Victoria apareceu na minha vida, e eu não sabia se estava pronta para sofrer novamente. Mas o tempo me mostrou que ela era uma das mulheres da minha vida. Aos poucos, ela se tornou tudo para mim. Ela era meu refúgio, um abrigo seguro para me esconder da chuva e fugir da tempestade. Confiei a ela minhas dores, meus segredos, cada pedaço da minha vida. Escutei seus anseios, sua história, seu amor, e abracei tudo isso com força, envolvendo meus braços na cintura da sua alma. Ela não me machucou; ao contrário, me deixou ser livre, e eu fiz dela o meu ninho. E quando não deu mais para continuar em terra firme, ela decidiu voar comigo. Nossas almas se emendaram, e isso me fez a pessoa mais feliz do mundo.
Victoria é uma das memórias mais quentes que guardo. Lembro-me de como, de repente, comecei a decorar seus jeitos, suas manias. Cada gesto, por menor que fosse, abraçava minha lembrança e dormia ali, seguro e protegido. Hoje, consigo me recordar de todas as vezes que ela foi sutil demais para que eu percebesse o tamanho do meu amor por ela. Eu a amei tanto que não cabe em uma só vida.
Ela sempre sorria quando eu pegava em sua mão, como se agradecesse ao universo por nossa existência conjunta. Ficávamos nos entreolhando até o dia clarear, e quando a música tocava, ela ganhava outra dimensão, tornando-se "nossa", do nosso universo, particular e peculiar, imune ao assalto mundano. Mas agora, aqui estou eu, pensando. Será que é assim mesmo? Será que a gente aperta o pescoço do que foi bom, gangrena a circulação sanguínea e degola as promessas, até que elas se tornem meras palavras dentro do contexto afetivo?
Victoria poderia ter desistido de mim no dia seguinte àquele encontro cheio de risos. Poderia ter me pedido a meia vermelha de volta, poderia ter me mandado embora da sua vida, poderia ter falado sobre o horrível desde sempre. Poderia. Deveria. A memória é fremente, e fica tateando todos os movimentos que, nesse meio-tempo, compuseram o que as pessoas chamam de "vida". Passei uma vida com ela: inteira, imersa, intensa e maravilhosa. E agora, o que sobra? Sobram esses flashes, a dor aguda da frieza queimando minha mente e minha pele, o vazio daquilo que existiu e pode acabar. Sobra a imagem estarrecedora do começo e do fim, quando, juntas, prevíamos o eco ensurdecedor da perda diária. De tudo. A lembrança permanecerá. Quente.
Ela me deu, para além do que pensava ter e não tinha: amor. Ela me deu, me ensinou tudo de novo. Mas agora estou com medo, muito medo. Medo de que este seja o começo do fim.
Enquanto me perco nesses pensamentos, Ana Liz corre pelo jardim, rindo e aproveitando a vida com a energia que só uma criança de seis anos tem. Ela criou um amor tão grande por mim, que estamos sempre grudadas. Seu riso é uma lembrança constante de que, apesar dos medos e incertezas, a vida continua. E enquanto observo Ana Liz brincar, sinto uma pontada de esperança. Talvez, apenas talvez, ainda haja tempo para redescobrir o que nos trouxe até aqui. Para, quem sabe, girar o relógio ao contrário, nem que seja só um pouco, e reviver o que nos fez tão felizes.
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Perdido ao sonho
Historical FictionQuando nos apegamos ao passado, o futuro promissor se obscurece sob o véu das lembranças, aprisionado entre os escombros do que já foi. É como se nossos sonhos, outrora radiantes e audaciosos, se perdessem na penumbra da nostalgia, enquanto nos enco...