Nós nunca seremos culpadas.

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Eu sempre me considerei uma pessoa observadora. Embora seja distraída às vezes, é porque me perco tentando captar muitas coisas ao mesmo tempo. Lembro-me perfeitamente de quando observei os olhos dela pela primeira vez e do jeito que ela me olhava no início. Mas, no último ano, percebi que esse olhar havia mudado. Não era mais o mesmo.

A primeira vez que notei isso foi quando a levei para ver um dos meus horizontes favoritos. Era o fim de uma tarde, o sol já se inclinava no céu, e os olhos dela brilhavam ao contemplar a paisagem. Ela observava tudo com cuidado, como se quisesse gravar cada detalhe, talvez porque soubesse que demoraria até voltarmos ali. Ela ajeitou o cabelo, preocupada em não deixar que nada estragasse aquele momento. Tudo isso durou apenas alguns segundos, mas para mim, pareceram horas. Passei todo esse tempo pensando em nós, sobre o que estávamos nos tornando. Talvez fosse o início do fim.

A segunda vez foi na biblioteca da minha casa, no Brasil. Ela entrou, tocou meus livros, e seus olhos se arregalaram ao redescobrir aquele lugar. Embora já tivesse estado ali antes, algo parecia diferente para ela. Dois livros, em particular, chamaram sua atenção. O primeiro foi "Fausto", de Goethe. Eu pouco li, mas sei que é sobre Mefistófeles tentando conquistar a alma de Fausto, um homem que busca conhecer tudo o que é possível aprender. O segundo foi "Madame Bovary". Não sei muito sobre ele, apenas que é um romance que nem me pertencia. Para mim, eram apenas livros antigos; para ela, eram portas para um mundo novo, cheio de mistérios a serem desvendados. Seus dedos traçaram as linhas douradas das capas e as marcas de tempo nas páginas, e sua mente parecia viajar, imaginando a idade do livro. Eu a observei completamente imersa, mas escolhi não interromper aquele momento.

Esses momentos passaram rapidamente, quase como um piscar de olhos, mas na minha mente, duraram uma eternidade. Eu me dei conta, então, de que ela queria explorar o mundo, descobrir as coisas mais bonitas que ele tinha a oferecer. Eu não podia dar isso a ela; eu pertencia a outro universo, um que ela não habitava mais. Ela já esteve ali, mas foi nesses dois momentos que percebi que o universo dela havia mudado, se afastando do meu.

Quando Victoria me chamou para conversar, havia algo diferente em seu tom de voz, algo que me deixou alerta. Ela parecia animada, mas havia uma tensão subjacente, algo que não consegui identificar de imediato. Nos sentamos no sofá da sala, aquele mesmo sofá onde tantas vezes havíamos planejado nosso futuro, compartilhado sonhos e expectativas. Eu tentei afastar os pensamentos sombrios que rondavam minha mente, focando apenas no sorriso radiante de Victoria.

— Nath — ela começou, a voz dela estava carregada de emoção —, tenho uma notícia incrível para te dar.

Eu sorri, esperando. Aquele brilho nos olhos dela sempre me fazia sentir um calor no peito.

— Eu fiz um teste para um filme em Hollywood — ela continuou, visivelmente entusiasmada. — E... fui aceita para um grande papel!

Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo o que ela havia acabado de dizer. Meu coração deu um salto de alegria por ela. Eu sabia o quanto ela sonhava com isso, o quanto esse papel significava. Então, sem hesitar, eu a abracei com força.

— Victoria, isso é incrível! Eu estou tão, tão feliz por você! — Eu disse, a voz embargada pela emoção. — Você merece isso mais do que ninguém.

Ela me apertou de volta, mas havia uma hesitação no abraço dela, algo que eu logo perceberia ser mais do que apenas nervosismo.

— Nath... — ela começou novamente, se afastando um pouco para me olhar nos olhos. — O papel é grande, e as gravações vão durar dois anos. Vou precisar me mudar para Los Angeles durante esse tempo.

Meu coração deu um salto, mas dessa vez de uma forma diferente, como se uma sombra tivesse se instalado sobre a alegria anterior.

— Dois anos... — repeti, tentando processar.

— Sim — ela confirmou, o tom dela era suave, mas decidido. — Eu estava pensando... talvez... você gostaria de ir comigo?

Havia um pequeno brilho de esperança em seus olhos, mas também uma sombra de incerteza. Eu a amava tanto, e queria estar ao lado dela, apoiá-la em tudo, como sempre fizemos uma pela outra. Mas algo na maneira como ela me olhava, como se estivesse esperando que eu dissesse as palavras que ela não queria dizer, me fez hesitar.

— Você gostaria que eu fosse? — perguntei, minha voz trêmula. Sabia que estava jogando a responsabilidade de uma escolha difícil nas mãos dela, mas precisava ouvir a verdade.

Ela baixou os olhos, suspirando profundamente antes de responder.

— Nath... essa é a minha chance de voar sozinha. Quando foi a sua vez, eu respeitei e deixei você voar. E agora, eu sinto que preciso fazer isso por mim mesma. Preciso conhecer o mundo, preciso... encontrar algo em mim que talvez só possa ser encontrado quando estou sozinha.

Aquilo doeu. Eu senti como se o chão estivesse se abrindo sob meus pés, mas ao mesmo tempo, compreendi. Eu sabia exatamente o que ela estava dizendo, porque eu já estive ali. Já senti o desejo de explorar, de descobrir o mundo e a mim mesma, sem amarras. E, ainda assim, a dor era insuportável.

— Então... isso significa que... — Eu não consegui completar a frase, mas ela sabia. Sabia o que eu estava tentando dizer, e isso fez as lágrimas brotarem nos olhos dela.

— Acho que isso significa que nosso relacionamento chegou ao fim, Nath — disse ela, com a voz embargada. — E eu odeio admitir isso, odeio mesmo. Mas, ao mesmo tempo, nós duas sabemos que é verdade. Não quero que as coisas acabem em ressentimento ou dor. Quero lembrar do que tivemos como a coisa mais maravilhosa das nossas vidas. Porque foi, não foi?

Eu assenti, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto agora. Cada palavra que ela dizia parecia cortar mais fundo, mas eu sabia que ela estava certa. A verdade era dolorosa, mas inegável.

— Foi a coisa mais maravilhosa que já tive, Victoria. Eu te amei com tudo o que eu sou, e ainda te amo. Só que... as coisas mudaram. E é difícil admitir isso, mas talvez seja o momento de seguirmos caminhos diferentes.

Ela concordou, enxugando as lágrimas.

— Eu também te amo, Nath. E talvez esse seja o motivo de sabermos que está na hora de deixar ir. Para que possamos continuar a nos amar, mesmo que de outra forma.

Eu respirei fundo, tentando absorver o que tudo isso significava. O fim do nosso relacionamento não era o fim do amor que tínhamos uma pela outra, mas uma transição, uma mudança.

— Victoria — comecei, segurando a mão dela —, essa casa sempre será sua. E Ana pode continuar morando aqui. Eu ainda amo todos vocês como sempre, e isso não vai mudar. Nós ainda somos uma família, mesmo que não estejamos mais juntas.

Ela sorriu tristemente, apertando minha mão com força.

— Obrigada, Nath. Isso significa muito para mim. Saber que, mesmo que não estejamos mais juntas como antes, ainda temos um lugar uma na vida da outra.

Nós ficamos ali, sentadas juntas no sofá, segurando as mãos e deixando que as lágrimas fluíssem. Não era o fim que eu havia imaginado para nós, mas era o fim que precisávamos. Um fim que, de alguma forma, ainda carregava todo o amor que construímos juntas.

— Eu vou sentir sua falta, Nath — ela sussurrou, quebrando o silêncio.

— Eu também, Victoria. Mas eu sei que você vai brilhar, que vai encontrar o que está procurando. E quando você voltar, estarei aqui, como sua amiga. Porque esse amor que a gente construiu... ele não vai desaparecer, só vai mudar.

Ela assentiu, o olhar dela fixo no meu, cheio de uma tristeza que era profunda, mas também cheia de compreensão.

— Até lá, Nath... obrigada por tudo.

Eu apenas sorri, tentando guardar aquele momento, sabendo que, por mais que doesse, era o início de algo novo para nós duas. Algo que, com o tempo, aprenderíamos a aceitar e a valorizar.

E assim, com um último abraço, selamos o que foi a nossa história. Uma história que, mesmo chegando ao fim, ainda permaneceria viva dentro de nós, de uma forma ou de outra.

Perdido ao sonhoOnde histórias criam vida. Descubra agora