A FEIA NUDEZ

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A propósito da melindrosa de 1929, escrevi, certa vez: — "Comoé antigo o passado recente". Gostei da frase e pinguei-lhe um pontode exclamação. De então para cá, sempre que posso repito, e nãosem uma certa vaidade autoral: — "Como é antigo o passadorecente".

 E, de fato, não há mulher mais antiga, mais fenecida, do que amelindrosa de 1929. É anterior a qualquer baixo-relevo assírio,fenício ou que outro nome tenha. Há pouco, andei repassando umdos primeiros números de O Cruzeiro. Exatamente de 1929, se nãome engano. E vi as grã-finas da época. Já não falo do vestido semcintura, nem do penteado, nem do sapato etc. etc. O que me importaé valorizar o espantoso olhar e o espantoso sorriso.

 Cada época sorri de certa maneira, olha de uma certa maneira.Repito: — por um olhar, ou por um sorriso, pode-se dizer de umacerta dama: — "Esta é do século Fulano, ou do século Beltrano". Equanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco. Ao passo quehá, entre nós e a melindrosa, como que uma distância abismai.

 Dirá alguém que de 1929 para cá são passados apenas 39anos. Ah, não acreditem no falso tempo das folhinhas. A idade damelindrosa de O Cruzeiro nada tem a ver com esses míseros,escassos 39 anos. E ela sorri de um tal jeito, e olha de tal jeito, que,por vezes, me ocorre a seguinte suspeita: — "A melindrosa de 1929nunca existiu".

 Se me perguntarem o que havia no seu olhar e no seu sorriso,eu diria que ambos eram idiotas. Recorram às velhas edições de OCruzeiro e, mais velhas ainda, do Fon-Fon, da Revista da Semana.

 Vejam as mais belas mulheres e as mais amadas do tempo. Olhavame sorriam como débeis mentais. Aí está dito tudo: débeis mentais. Esó admira que alguém as suportasse, ou pior, que alguém asdesejasse.

 Não sei se me entendem. Se estou sendo obscuro, paciência.Mas, como ia dizendo: — desdobro aqui a minha meditação deontem. Falei do biquíni, que, a meu ver, é muito, muitíssimo anteriorao primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. O biquíni, repito, tem aidade do impudor, que podemos estimar em para mais de, sei lá, 40mil anos. Digo 40 mil anos, como poderia dizer milhões.

 Bastam os 40 mil. O impudor era certo, natural, consagrado,na mulher pré-histórica. Mas, quando a mulher se tornou um serhistórico, o pudor foi a sua primeira atitude, o seu primeiro gesto.Mesmo as mais degradadas preservavam um mínimo de pudor. E eisque, de repente, em nossos dias, há todo um movimento regressivo.Aí está o biquíni.

 Dirão que tenho a fixação do biquíni. (A nossa vida moraldepende de uma meia dúzia de nobilíssimas idéias fixas. O santo ou,nem tanto, o simples homem de bem há de ser um obsessivo. Tenhoum amigo que só pensa em biquíni. Nos pesadelos, os umbigos oatropelam.)

 Durante séculos e séculos, a História preservou o mistério e osuspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Atravésdas idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguiavê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E,súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-históricas. Talcomo no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. Ecomeçamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito,sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixoude existir. Todas se despem, para o ser amado e para outros,inclusive o crioulinho do Grapette. 

Deixo de lado os outros povos. O que me interessa é o nosso.

 Nunca o povo brasileiro viveu tanto do passado, das rendas dopassado. Somos devorados por misteriosas nostalgias. Dizia-me,ainda ontem, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth: — "Nós somosvestidos pelos nossos avós". O próprio Borgerth anda, por aí,estranhíssimo. Inaugurou um bigode que me deu o que pensar. Euquebrava a cabeça perguntando-me a mim mesmo: — "Onde é queeu vi esse bigode?". E, súbito, um nome faísca na treva: "Rio Branco,barão do Rio Branco". O nosso Luís Eduardo pôs o bigode espectraldo barão.

 E o Carlos Alberto, presidente do Banco do Estado daGuanabara? Doce figura. Um belo dia aparece com os bigodões deum longínquo avô. Quando ele entra, ou quando ele sai, dá asensação de que é avô de si mesmo, ou o neto de si mesmo. No dia 2ou 3 do presente janeiro, fui receber na TV Globo. Embolso o dinheiroe passo no gabinete do Walter Clark, o gênio da televisão. (Segundo oOtto Lara Resende, o Walter seria gênio do mesmo jeito, fossearquiteto, veterinário, agrimensor ou bombeiro hidráulico.)

 Entro e vejo o meu amigo sem paletó, um vasto charuto. Ocharuto é o de menos. O transcendente eram os suspensórios. Nãose pode falar dos suspensórios do Walter Clark sem lhes acrescentarum ponto de exclamação. Falei da melindrosa de 1929. Pois é esta adata dos suspensórios de Walter Clark, e repito: — era assim que osgângsteres da Grande Depressão seguravam as suas calças. Não sóos suspensórios. Também o colarinho, a gravata, a camisa listrada,as botinas.

 Eu disse 1929 e já não sei se a sua elegância não será umpouco anterior. O fato é que, ao me despedir, tive vontade deperguntar-lhe: — "Estás faturando bem com a Lei Seca?". Mas oleitor sairia frustrado se eu não contasse uma singularidade: — ossuspensórios do Walter Clark têm paisagem. Neles há o Pão deAçúcar, corações flechados, faunos de gaitas, sátiros de pés de cabraetc. etc.

  Para sair da Grande Depressão, tive de deixar o gabinete. E cáfora, no corredor, já comecei a respirar o ano de 1968. Mas por todaparte continuo sentindo focos do passado. Na quinta-feira passada,apareceu aqui, de repente, o Otto Lara Resende. Vinha de Lisboa. Àssete horas da noite, sua presença explodiu na casa do HélioPellegrino.

 Mas era um outro Otto, sem nenhuma relação com o que daquisaíra para conquistar Portugal. Durante sua ausência mandara-meuma carta em que julguei perceber um sotaque lisboeta de LeopoldoFróis. Mas na casa do Hélio Pellegrino deu-me outra impressão.Lusíada da cabeça aos sapatos. Ou melhor: Eça puro. O Ottoinstalou ali, na rua Nascimento Bittencourt, todo um clima antigo. Eele próprio parecia alguém expelido do ventre da primeira edição deOs Maias.

 [15/1/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora