WERTHER

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Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é ocarioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão carioca. Éuma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dosparalelepípedos da cidade. Olha o Pão de Açúcar como se fosse aprimeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luzacaba de inaugurar o Corcovado. 

Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando ospombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milhona mão. De repente, ouço o berro: — "Nelson! Nelson!". Era oPalhares, "o que não respeita nem as cunhadas". Na calçada daBiblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome.E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparadaraspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem umarranhão, sem uma fratura e sem uma trombada. 

Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavouo rosto há quinze minutos. E anunciou: — "Tenho uma pra te contar,menino!". Imaginei que devia ser a sua última conquista. O Palharestem sempre uma "última conquista". E ele, já de olho rútilo, iacomeçar. Súbito, balbucia: — "Até logo, até logo!". Segurei-o pelobraço: — "Que é isso, rapaz?". Diz, baixo: — "Vem aí o Torres. Já meviu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro.Adeus!". Largou-me e fugiu. 

E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar.Atravessei para a Câmara, dobrei Evaristo da Veiga e fui andando,rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, "o homem de bem",justificariam o meu horror e o do Palhares. O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as esquinas, salas eretretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me deum dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — "Souum homem de bem! Sou um homem de bem!". E quando ele apareceas pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do queisso, o rapa. 

Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promover talesmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. Atoda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a suaintegridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, hácastos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondadesem impudor. 

Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet.Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem doesporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o AbrahimTebet "ser humano". Muita gente só tem de humano o terno, agravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguémparecido com o ser humano. 

Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo depresidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura patéticae, eu quase dizia, chapliniana, a do "empossado". Depois dogovernador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Imaginei: —"Vai chorar!". Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar aprópria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da CasaCivil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Maso nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, numsuntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria paramim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficialestarrecia os mais tímidos.

 Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Volto aele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Torres, que sebadala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bemàs escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom comvergonha de o ser. Quando ele deixou a CBD, houve quemsussurrasse o vaticínio: — "Vai morrer de fome". Aí está. Abrahim, odoce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhebarrar por cima. 

(Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o risoluminoso e forte dos sátiros vadios.) Falei de Abrahim e passo aoNelsinho Motta. Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não sócronista: — também homem de TV, da canção, do romance (aindanão escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E oNelsinho, que é romântico por dentro e por fora, romântico no terno,romântico na gravata, romântico na calça de veludo e romântico napalidez. Faço ponto, porque já vou arquejando. E, como ia dizendo:— o Nelsinho escreveu, justamente, contra os românticos. Há umarapaziada aí que anda bebendo nas fontes líricas da música popular.E meteu-lhe o pau. 

Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda umaimagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seriaum vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue geladoda burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o antiChico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguémmais pungente. E como é antiga e infeliz a sua ternura. Queremtransformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzalvagabundo. 

Dirá o leitor: — "E Roda viva?". Ah, Roda viva é também o antiChico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Celso. O diretorsentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não háuma janela. Ora, o Chico tem, como as modinhas antigas, a obsessãodas janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (deHermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — "Pela janela da saudade"etc. etc. Aí está insinuada a Carolina. 

E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som demoeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, todosnós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazerum pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outrodevia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fronte alta: — "Damase cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e hereditário". E o SérgioBuarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil?Em várias entrevistas, já declarou: — "Eu sou apenas o pai doChico". Eis um gesto do piegas radical e incontrolável. 

Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma ferozpolêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu,velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, comtodo o esplendor das Novas Gerações. Mas não há tal polêmica. ONelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mimas minhas próprias piadas. Quando cruzar com esta figura da belleépoque, hei de perguntar-lhe: — "Quando é o pacto de morte?". Edirá ele, pálido como um Werther: — "Estou caprichando". 

[8/8/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora