O ÓPIO DAS ELITES

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Em todas as ruas, há um ódio. Ou é do ex-namorado pela exnamorada, ou de uma vizinha por outra vizinha, ou de uma famíliapor outra família. Na minha infância, vi um ódio de meninos. Umteria seus nove, outro, oito anos. Um deles, mais vingativo, encheude iodo uma seringa de borracha; e deu um esguicho no olho dooutro. De repente, a rua encheu-se de gritos. 

Ainda bem que foi um olho só, e não os dois. Dias depois,apareceu na calçada. Logo outros meninos e outras meninas sejuntaram. Fiquei espiando o ceguinho. Ainda agora, estou vendo oolho branco, ou melhor: — era branco, mas com uma mancha deazul leve, diáfano. E, não sei por que, eu achava mais bonito o olhocego e tinha inveja do olho cego. 

Assim como as ruas, também os povos precisam ter seu ódio.Não importa qual seja, nem contra quem. Hoje, estou convencido deque os povos sem ódio agonizam na mais pavorosa esterilidade, namais cruel frustração. Quando me contam que a estatística desuicídios, na Suécia, atinge proporções inéditas, bem entendo esseferoz tédio sueco. Falta a seus homens e falta às suas mulheres oincentivo mágico, vital, do ódio.  

Na minha infância, o ódio era o argentino. Odiávamos oargentino. Eu, garoto, de seis, sete anos, ficava ouvindo a conversados adultos. Tinha-se como certo que, mais dia, menos dia, íamosbrigar com a Argentina. Meu irmão Roberto me dizia: — "Osargentinos chamam os brasileiros de macaquitos!". E, por muitos emuitos anos, aquilo me doeu na carne e na alma. Era como se fosseeu o macaquito, eu a vítima única do insulto direto e crudelíssimo. 

Mas o barão do Rio Branco cometeu um erro, a meu ver grave.Era um estadista. Mas vejam vocês: — nem sempre o estadista épsicólogo. Não percebeu que devia promover, e não contrariar, anossa paixão contra a Argentina. Um bom ódio, obsessivo eunânime, é a melhor, a mais eficaz, a mais fascinante distração deum povo. O vizinho, a família ou o povo que odeia esquece todas asoutras questões vitais. Dito isto, passo adiante.

 Até que um dia (ainda estou falando de Brasil x Argentina), atéque um dia houve um episódio. Seria, em outras circunstâncias, umfato secundário, intranscendente e, mesmo, humorístico. Mas o povoviu o incidente através da óptica monumental do ressentimento. E,de repente, a cidade saiu para as ruas. Todo mundo se juntou nolargo de São Francisco. Hoje, passo anos sem pisar no largo de SãoFrancisco e sem ouvir-lhe o nome. De vez em quando, chego a meperguntar: — "Será que existe o largo de São Francisco?". Se nãoexiste hoje, naquele tempo existia. 

E a multidão veio para o largo de São Francisco exigir "guerra".Queríamos mobilização fulminante e fulminante invasão. E o barãodo Rio Branco foi avisado. Largou o gabinete e veio, de carro aberto,para a praça pública. Quando chegou ao largo de São Francisco,recebeu uma tremenda ovação. Naturalmente, viria trazer também oseu grito de guerra. Em pé, no carro, com a sua nobilíssima barriga,ele fez um gesto de silêncio. Pedia silêncio e fez-se o silêncio. E,então, ele ergueu o chapéu: — "Viva a Argentina!". Pausa. O povoestava mudo, num desses espantos jamais concebidos. E o nossoParanhos repetiu: — "Viva a Argentina!". E, então, subiu dasentranhas da massa o berro triunfal: — "Viva a Argentina!".

 Mas, repito, foi um erro. Volto ao que dizia. Como pode viveruma rua se, entre vizinhos, entre famílias, não explode um dessessentimentos fortes e exterminadores? Assim o povo. Nada como umódio geral para uni-lo, para dar-lhe uma tensão nacional e dinamizarsuas potências criadoras. Realmente, ninguém trai o seu ódio e repito: — o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor.

 Vimos que, em dez minutos, saímos do "morra a Argentina"para o "viva a Argentina". Anos depois, o barão morreu; e seuenterro, segundo as testemunhas, foi maior que o de Inês de Castro.Mas eis o que eu queria dizer: — a partir de então, o povo teve algunsódios locais, com graus diferentes de intensidade: — um deles foiPinheiro Machado. Mas o ódio a Pinheiro foi mais retórica do quepaixão. Era, digamos assim, um ódio de comício. Foi apunhalado porum discurso. Tivemos também Bernardes. Eu, com nove anos, odieiBernardes; os meninos de Aldeia Campista odiaram Bernardes. Masera pouco para o nosso coração. O ódio que rende mais, que dádividendos mais generosos, exige o estrangeiro. 

Graças a Deus, descobrimos o americano. O americano foi,mais que um ódio, uma solução. Se odiamos o americano, nãoprecisamos nem amar o Brasil. Não exagero nada. A evidência estáaí: — o Brasil é um país por fazer. Fazer o Brasil seria a nossa tarefa.Não damos um passo sem esbarrar, sem tropeçar num problema.Tudo no Brasil é problemático. Mas reparem: — quanto maisodiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, repito, menos oamamos. O Vietnã está mais próximo de nós do que Magé. E sabempor que essa impotência nacional para qualquer trabalho sério? Porcausa dos Estados Unidos. 

Mas temos as nossas elites. As elites, porém, estão entretidasem odiar o americano. E não tapam um buraco de rua, não soldamum cano furado, não desentopem uma bica. Na hora de pichar omuro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Tsé-tung, e aGuevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais. 

Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas. Econvém falar, em especial, dos nossos intelectuais. São socialistas,em sua maioria absoluta. Pode-se perguntar: — à maneira sueca?Não e jamais. Ninguém fala da Suécia, porque lá não houve sangue,nem ódio, nem extermínio, nem escravidão. Portanto, a Suécia não interessa. O nosso intelectual está de olho no socialismo totalitárioda Cortina de Ferro. Dirá alguém que ele, intelectual, por boa-fé,ingenuidade ou simplesmente burrice, é vítima de uma funestailusão. Mentira. Ninguém que ligue duas idéias tem o direito de seiludir a tal ponto. A experiência socialista é a mais gigantesca e vilimpostura do nosso tempo. E o intelectual é o primeiro degradado,sempre. O romancista, o poeta, o cineasta, o dramaturgo, o crítico, oartista plástico, o compositor, todos, todos são rigorosamenteescravos. E quando um ou outro insinua um vago lamento, vem apolícia e o interna como louco. E os psiquiatras do Estado o tratamcomo doente mental perigosíssimo. Ou, então, é fisicamentedestruído.  

Uma dona de casa que me leia há de perguntar: — "Mas onosso intelectual sabe disso e, apesar disso, quer isso mesmo?".Quer. A maioria quer. Pergunta: — "E por quê?". Como diz umvizinho meu: — "Há gosto pra tudo". Diria mais que, por uma fatalcoincidência — fora poucas exceções, suicidas —, o intelectual nãoresiste ao totalitarismo comunista. Tem sido assim em toda a Cortinade Ferro. Jamais insinua um protesto contra o estupro da liberdade,da inteligência, das artes e da pessoa humana. 

Volto às elites. Temos aí artistas, escritores, médicos,arquitetos, cineastas, professores, os grã-finos. Ninguém faz o Brasil,porque só temos tempo de odiar o americano. E fica todo mundonuma deliciosa e alienada inércia contemplativa. Sim, o ódio aoamericano é o ópio das elites brasileiras. 

[15/8/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora