O ÚNICO DE GAULLE

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Uma das maiores festas populares do velho Rio era o "grandeenterro". Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil quepassou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, dePinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso,sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha,radiante, enterrar o "grande homem".

 Claro que ninguém chorava o defuntooficial. E, portodo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Osmoleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — "Evém! Evém!". Maseu disse que ninguém chorava o "grande homem" e já retifico: — as velhinhaschoravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do RioBranco.

 Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era ochapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante damorte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse. Mas euestava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi omaior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o "grandehomem" até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que maisme fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceitocardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumamfazer a restrição pressaga: — "Você está muito gordo".

No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homemde Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só asvelhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis oque eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabeentão a pergunta: — e por quê?

 Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve ummomento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dosvelhos enterros do Brasil. Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc.etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais deInês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que nãovira, jamais, um "grande enterro".

 Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos "grandes homens".Houve a dúvida: — "Vivos ou mortos?". Convencionou-se que só interessavam osvivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomeslembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo deangústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — "Será que, no Brasil, ninguémé grande homem?". Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntesedesesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto.O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — "O Brasil não tem um grandehomem para enterrar". 

Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. Odono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — "É impossível que o Brasilnão tenha um grande homem". Nenhum povo pode viver sem o grande homem.Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — "Quem sabe se não há, por aí, umgênio inédito?". Protesto do dono da carona: — "A primeira virtude do grandehomem é não ser inédito". Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamosrenunciado ao grande homem brasileiro.

 E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com oproblema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas,justamente a mais concorrida, a dos "100 mil". Estavam, ali, eretas as nossaselites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos,médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas. Do alto de umasacada, um observador podia imaginar: — "São os que pensam". E, de fato, era oBrasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro RaulBrandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — "Vai haver o diabo".

 O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada.Imaginei que ia começar, ali, a "Grande Revolução". Até que se ouviu a palavrade ordem: — "Vamos sentar". A docilidade foi total. E as nossas elites sentadaseram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: —"Levantar". Tal e qual no anúncio do "senta e levanta". Ninguém queria tomar opoder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil sederam por satisfeitos e cada qual foi para casa.

Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim,que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito maisobscuro do que um cachorro atropelado? 

Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — "O importante, noBrasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homemcomum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto". Arquejava de umafúria sagrada contra as elites.

 Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não sóno Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova "RevoluçãoFrancesa". Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12milhões de operários entraram em greve. Estudantes chamavam De Gaulle de "oassassino". O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê?Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grandehomem. 

A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velhoDe Gaulle, único grande homem francês.

 Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessionalde Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua "morte". Durante a "jovemrevolução", o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou deadular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelosjovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partirdaquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: —"Barrault morreu". Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina. Quinze diasdepois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator,falso grande homem, teve o seu prêmio.

 Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais oumenos isto: — "Rua! Rua!". E o artigo do"morto" vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário. Sejacomo for, a "jovem revolução" ensinou-nos que a França é uma paisagem semfranceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

 [27/9/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora