Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Massei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou ummaravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver.Qualquer conversa me fascina e repito: — não há conversaintranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade éparar e ficar escutando. Uma simples frase, ainda que poucointeligente, tem a sua melodia irresistível.
Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras noposte de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eramduas gordas e uma delas perguntava à outra: — "Sabe onde fica apraça Serzedelo Correia?". A outra respondeu: — "É pertinho daqui.Ali". E mostrava, com o dedo: — "Está vendo? Ali". A primeira olha esuspira: — "Então vou tomar o ônibus".
A distância que a separava da praça era de uma quadra.Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar umônibus para ir de uma esquina a outra esquina? Foi mais ou menoso que disse a segunda senhora: — "Não precisa ônibus. Para queônibus? Tão pertinho". Novo suspiro da primeira: — "Estou tãomachucada. Vou mesmo de ônibus".
Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência total.Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se"amarrotada". E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito,tinha um halo negro, um halo que parecia feito de rolha queimada.Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de umboxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia,dolorosamente, lá por dentro. E, então, compadecida, a outra quis saber: — "Mas que foi isso? Desastre?".
Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, umclima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — "Foimeu filho que me deu uma surra". Dizia isso sem nenhum horror,em tom castamente informativo. Era como se não fosse ela a mãe, efosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixapassar um momento. Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. Epergunta, com relativo interesse: — "Bateu na senhora?". Geme: —"Bateu". E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia,uma naturalidade hedionda.
A primeira olha no relógio de pulso: — "Já são onze horas, meuDeus!". E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — "Bateu porquê?". Disse: — "Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filhotem um gênio que Deus te livre. Muito nervoso". A segunda olha nofim da rua: — "E esse ônibus que não vem?". Espia de novo o relógio.Suspira: — "Caso sério". A primeira está dizendo: — "Quandorespiro...". Respira fundo: — "Dói aqui". Espeta o dedo: — "Aqui".
E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãeespancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motoristapudesse ouvi-la: — "Espera, espera". O trocador fica olhando ereclamando: — "Como é, minha tia?". Lá fui eu ajudá-la. Um outroapareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — "Ai, ai".Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — "Deus teabençoe, Deus te abençoe!". O trocador deu o sinal, o ônibus partiu.Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outraesquina.
Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — "Será que essamãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?". Vamos crerque fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há aimprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, asForças Armadas etc. etc. E toda essa maravilhosa estrutura não faznada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo éque ninguém se espante. O brasileiro cada vez se espanta menos.
A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: —não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito,apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delasestava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Agora me lembro: —falei, sim, da orelha. Paciência. Lembro-me de que, ao contar asurra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum),pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outracondenasse o rapaz, ela o teria defendido, talvez. Talvez, não. Estoucerto de que o teria defendido.
E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iriapara o espelho acusar a própria imagem: — "Bem feito, bem feito!".Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar razão à surra,existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e emtodos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própriafamília que atira pela janela todos os seus valores. Há poucos dias,um pai amargurado escreveu-me: — "Meu filho sabe mais do que eu!Minha filha sabe mais do que a mãe!". Porque fez dezoito, ou vinte,ou 23 anos, o sujeito passa a ter a "verdade da idade", a "razão daidade", o "direito da idade", o "poder da idade", a "virtude da idade".E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, opolítico, o psicólogo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintorRaul Brandão berrava numa galeria de pintura: — "O jovem temtodos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!".
Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estudantesda França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas dafome, furiosas contra a fome. Mas logo se percebeu que era aantifome. Sim, a antifome que devastava a França. E o mundo viu osfilhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos.Ninguém entendia nada. Certo parisiense, perfeito idiota daobjetividade, escreveu: — "A desgraça da França são os franceses". Outro propôs uma Resistência contra os franceses. Um terceiroqueria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França dabrutal ocupação francesa.
E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jovens,todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles,além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vidraças? Forampichar as obras-primas do teatro Odeon. Passaram a gilete ou abrocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estuproplástico? Porque os estudantes eram contra a "arte oficial". Masfecharam a Bienal, por se tratar de arte moderna, capitalista etc. etc.O festival de Cannes foi também fechado, a tapa. Alguém queacordasse, de repente, havia de imaginar que era uma novaocupação nazista. Os nazistas nunca se lembraram de humilhar,degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E ocurioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram elesa alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.
Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra. Foi umpouco o papel da França ao ser agredida pela própria juventude. Láninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição dafamília diante dos seus filhos. Dizia-me, ontem, um padre depasseata: — "A família tem seus dias contados". Viu a minhaperplexidade e perguntou: — "Ou você não percebe que a família éuma instituição falida?". Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.
[5/8/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...