CAÇA-NÍQUEIS

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Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revista denus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós! Tudo que tenha umvago sotaque norte-americano já exala o terror. Finalmente, tomocoragem e abro o envelope. 

Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, ocorrespondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega paracolega. Pedia, em suma, informações urgentes sobre "Palhares", obrasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodosoriginais e revolucionários de educação sexual. Playboy queriabiografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc. Li e reli, namais absurda das perplexidades.

 Eis o que me perguntei: — "Palhares, que Palhares?". Por umdesses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui oualhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palhares. SeriaTavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, derepente, invadia a minha vida era o desconhecido total, jamais visto,jamais cumprimentado. O bilhete dava, embaixo, no canto da página,um número de telefone. Liguei.

 Por sorte, encontrei o diabo do correspondente. Disse-lhe a feiae humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo oumorto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, nomomento, o Palhares é o nome obsessivo, a figura obrigatória? Só sefalava no Palhares. Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, asanedotas do Palhares, as piadas do Palhares. Saí do telefonehumilhadíssimo. Numa amargura medonha, pensava na idéia que aPlayboy faria de mim, o único brasileiro que desconhecia o Palhares! 

 Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num boteco,tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhasprofundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misteriosoPalhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhecia, sim, e delonga data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas.Coisa de espantar: — o Palhares era um sobrenome. O seu nome porextenso é uma maciça impossibilidade. Ele próprio o diz: — "Desdegarotinho, sempre fui Palhares, e só Palhares!".

 Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nossoherói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nestacoluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, possorepetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhadano corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo nopescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha. Não sei porinconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palharespassava, havia o cochicho estarrecido: — "O que não respeita nem ascunhadas!". 

Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi deuma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. Todas as portasse abriram para o canalha. No emprego, por coincidência ou não, ochefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário.Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela,cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me queuma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio,suspirava: — "Adoro o Palhares!". Dizia isso e tinha, no pescoço, umcolar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio's e o vejo comum vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — "Que é isso?". Eele, com ardente seriedade: — "O Cristo!". Em seguida, desembrulhae mostra o retrato de Guevara. Lá estava o guerrilheiro, de boina, acara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.

 Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — "Rapaz, a piadatem limite". Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — "A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quando, mudar deCristo". Olha para os lados e baixa a voz: — "Este retrato é umamina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento.Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio deamar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada". E, nofim, deu-me o conselho: — "Você tem de ser socialista. É o golpe". 

Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, umdia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educaçãosexual. Bati o telefone: — "Escuta, Palhares. Que negócio é esse deprofessor? E de educação sexual ainda por cima?". Fiz-lhe mesmo apergunta contundente: — "Desde quando deixaste de seranalfabeto?". 

Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: —não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de umluminoso impudor: — "Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Nãoleio nem manchete". Fiz a pergunta impaciente: — "Mas qual é o teucolégio?". Ao ouvir falar em colégio, Palhares soltou uma gargalhadade se ouvir no fim da rua: — "Colégio? Me achas com cara decolégio?". Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: —"Faço educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio".

 Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-seo bem-sucedido total: — "Podes chamar-me de analfabeto. E eu souanalfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bêa-bá para ensinar educação sexual". Conversamos duas horas.Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presenteépoca. "Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizertudo, fazer tudo, pensar tudo." 

Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — "Resumindo,qual é o conselho que você me dá?". Fingiu modéstia: — "Quem soueu pra te dar conselhos?". Insisti. E, então, o canalha tira umpigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — "Seja o ex-católico. Nomomento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão".

 Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu jáqueria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalhapara dizê-las. Pergunto: — "Que história é essa de ex-católico?". Onosso Palhares foi preciso: — "É o seguinte. Repara. Há uma colossalmaioria católica. Não há? É o óbvio". E continuou. Segundo ele, nãoadianta nada ser "maioria". Quem tem o poder de decisão, e o exercefuriosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palharescita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, osminoritários como influem, como decidem, como agitam. E a maioriacatólica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada. Ouvio Palhares sem interrompê-lo. Terminou com uma profecia jucunda: 

"Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda seremos omaior povo ex-católico do mundo".

 [19/6/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora