AS CABEÇAS ROLANTES

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E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens daFrança começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e aincendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos osidiomas. Ninguém entendia nada. A primeira Revolução Francesafora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se MariaAntonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisasaconteciam e por que rolavam as cabeças. 

Mas a recente agitação estudantil teve um defeitoindesculpável: — faltou-lhe o Terror. O mundo ainda faz a perguntasem resposta: — "Onde estão as cabeças cortadas?". Simplesmente,não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, como nãohavia gasolina, ninguém morria, nem atropelado. 

Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eudiria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosafrancesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm uminsuperável requinte estilístico. Além de arrancar a capa de asfalto epôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas frases. Uma deladizia assim: — "É proibido proibir". Houve um dia em que todos osmuros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berrovital: — "É proibido proibir". 

E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia deestudantes, levantou-se um barrigudo: — "Quero falar. Sou umcapitalista". Um jovem líder se levanta: — "Fala o camaradacapitalista". E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poetaAragon pede a palavra. Um estudante diz: — "Aqui, qualquer umpode falar, inclusive o último dos traidores". Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia,como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.

 Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre nolírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filósofoesteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meioindigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como sefôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma desuas conferências. Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamberlhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobrique há, sim, admirações abjetas.

 Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E osestudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houveconversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica indulgência. Por fim,o gênio levantou-se, humilhadíssimo; disse: — "Vocês têm maisimaginação do que eu". Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens oenxotaram e assim começou a solidão de Sartre. 

Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mesmo ado general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. Ajovem massa levava cartazes assim: — "Fora De Gaulle", "De GaulleAssassino", "Morte para De Gaulle". O general estava fora do país.Sim, o mito passeava. Quando voltou à França, declarou para o seupovo: — "Eu sou a Revolução!". Foi um espanto mundial. E todossentiram que De Gaulle era o último "eu" do século. Olhem o nossomundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro "eu". E o heróisetuagenário parece um momento da insânia humana. Só um louco,em sua danação, pode-se julgar um "eu".

 Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil. Antes,porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer MariaRilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momentodo epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente "a volúpia de serninguém". Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, comoDe Gaulle, que se imagina "eu", não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a suadessemelhança genial.

 Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. Oque me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nossoteatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o óbvio. O que euchamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes decomeçar. Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensãocriadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nossa tragédia. Todauma geração de autores, diretores, atores parecia saturada depotencialidade. 

Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o processoteatral. Falei do "nascimento da tragédia" no Brasil. E o queaconteceu foi espantoso: a "tragédia brasileira" ainda não nasceu e jáestá decadente. Entendem? Decadente antes de nascer. Todo omaravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se corrompeu no show idiota.Mas há pior e, repito, há pior. O show ainda tem uma relação com oteatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizesabandonam o palco. Cabe então a pergunta: — e onde estão eles?

 Cada qual assume a forma impessoal, numerosa eirresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto,da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos esó odiamos em massa. Sim, estamos todos massificados. E cada umsente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser ninguém. O sujeitose dissolve na passeata, na assembléia, na unanimidade. E ninguémfaz as coisas simples e profundas que o teatro exige. Em vez derealizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila daCinelândia à Candelária. E basta. 

E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Morreu apartir do momento em que nos politizamos. Felizmente, a nossatraição ao "drama brasileiro" tem nobilíssimas razões e, eu diriamesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem asrepresentamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema dafome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo,Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falharam, por azar,inépcia, incompetência, má-fé, corrupção. O que não acontece com aClasse Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia.Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos,atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina dapusilanimidade. 

[26/7/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora