A história dos meus jantares e almoços com o Hélio Pellegrinonão é, como pode parecer aos idiotas da objetividade, um problemade menu. (Eu devia estar aqui falando do desfecho do Festival.) Mascomo ia dizendo: — acima das preferências de cardápio e davoracidade dos nossos apetites, há toda uma complexa, dilacerada,conflituosa relação humana.Não sei se me entendem e tentarei explicar. Enganam-se os quevêem um só Hélio Pellegrino. São dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. Aalma do meu amigo tem sido palco de uma batalha feroz entre um eoutro, entre ele e o seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo. Diráalguém que estou apresentando a figura de um centauro.Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a outra metade o antiHélio.Mas como o leitor é fanático da nitidez, tentarei ser mais claro.O Hélio é a pessoa e o "outro" Hélio a antipessoa. Se, apesar daminha prolixidade, ainda não me entenderam, paciência. O quechamo Hélio do puro, do legítimo, do escocês, é o que me telefonouna véspera dos meus anos. Dias antes, eu o desafiara a jantarcomigo no meu aniversário. Esse repto foi, e aqui o confesso, umaimpiedade. Sim, eu sabia que estava provocando uma luta corporalentre o Hélio e o anti-Hélio, ou seja: — entre o poeta e o político.Para minha sádica satisfação, as coisas se passaram como euprevia. Os dois Hélios marcaram um encontro no terreno baldio, àmeia-noite, a hora que apavora. Tratava-se de decidir se o poeta epsicanalista devia comer, ou não, um bife comigo. Como era umarixa crudelíssima, o contra-regra do terreno baldio providenciou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto.Segundo a cabra vadia, única testemunha do fato, o bate-bocateve um fundo de relâmpagos de curto-circuito e de trovões deorquestra. E, como se trata de um centauro humano, as duasmetades chegaram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite.Começaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e escouceava, erao anti-Hélio. O Hélio, não.O Hélio legítimo, escocês e não falsificado, é o que há de maisdoce, terno, compassivo, luminoso. Quantas vezes já o vi crispado demisericórdia como um santo. E não resisto à tentação de contar umdos seus gestos exemplares. Eis o caso: na véspera de partir paraLisboa, o Otto Lara Resende estava, na cozinha do Hélio, bebendoum copo de leite. Bebe o leite e, súbito, dá-lhe uma nostalgia total doBrasil. Começa, então, a chorar. Enquanto o anti-Hélio achava aquilouma papagaiada, o verdadeiro Hélio chora também. Os idiotas daobjetividade dirão que um chorava porque partia, e o outro choravaporque ficava.Não, não. O Hélio chorava de graça, chorava por nada. Minto.Ninguém chora por nada e repito: — chora-se por tudo. Devíamoschorar, em massa, em unanimidade, todos por todos. Mas o queimporta notar é que o Hélio chora. Dito isto, voltemos ao terrenobaldio. O anti-Hélio esbravejava: — "Você não pode jantar com abesta do Nelson! É um reaça! Acredita nos Dez Mandamentos! É daIgreja velha! A favor da Virgem Maria!". E o verdadeiro Hélio: — "Masé meu amigo! Gosto dele! Meu chapa!". Dando rútilos coices, dizia ooutro: — "É a favor dos 2 mil anos da Velha Igreja e contra os quinzeminutos da Nova!". Dada a exaltação de ânimos, o contra-regraprovidenciou mais uma meia dúzia de relâmpagos de curto-circuito eoutra de trovões de orquestra.A guerra verbal durou até às quatro da manhã. O anti-Héliobatia na mesma tecla: — "Não podes jantar com a reação! Não podesjantar com a Direita!". Às cinco horas da manhã, o legítimo Hélio capitulou: — "Está bem. Não janto. Mas preciso telefonar. Dou umadesculpa. Afinal, gosto do Nelson, que diabo!". E assim se fez.O telefonema que me deu o Hélio, na véspera dos meus anos,foi uma página de Os Maias. Disse-me que nada mudara; era meuamigo como nunca; e foi mais taxativo: — "Autorizo você a dizer, noseu artigo, que você continua sendo um dos meus amigosfundamentais!". Mas logo acrescentou: — "Só não posso jantar".Pigarro e ajunta: — "Tenho que ir a Teresópolis!". Eu imaginei oesforço físico que lhe custara fabricar tal viagem contra um pobre eindefeso aniversariante. Transido de remorso, disse ainda: — "Nasemana que vem jantamos juntos. Sem falta. Faço questão". E eu: —"Deus te abençoe, Hélio, Deus te abençoe".Dia dos meus anos, todo mundo jantou comigo, menos o Hélio.Sua ausência estava sentada na minha alma. Mas, e o jantarposterior, combinado e datado por ele mesmo, com a ênfase doscompromissos fatais? Sim, o jantar mais esperado do que o Messias?Interditado pelo anti-Hélio, o meu amigo não me telefonou nem paraperguntar: — "Morreste?". Mas dizia eu que o nosso jantar não erauma questão de menu. Em verdade, seu telefonema foi um momentoda consciência humana: enquanto meu obscurantismo não meproíbe de tê-lo por amigo, seu socialismo o impede de jantar comigo.E eu sou, segundo ele próprio o declara com a sua bela voz debarítono, um dos seus "amigos fundamentais". Durante anos, oscasais Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende não faltaram na minhamesa de aniversariante. Lembro-me de que, na véspera da morte deGetúlio (eu faço anos a 23 de agosto), abri a minha casa, de par empar, para recebê-los.Tudo por quê? Porque o anti-Hélio, o Hélio falsificado, nãoadmite que eu insinue as minhas objeções ao d. Hélder e ao dr.Alceu. Tenho uma vizinha gorda que, nos grandes impasses,costuma dizer: — "Deixa pra lá, deixa pra lá". E eu ia esquecer tudo,quando, domingo, li o artigo do meu amigo e irmão sobre Lúcio Cardoso. Ora, fui, se assim posso dizer, amigo de infância do granderomancista. E pensei, antes de começar a leitura: — "Ainda bem queo Hélio escreve sobre o Lúcio". Ora, um artigo sobre Lúcio Cardosoteria de ser sobre Lúcio Cardoso. O diabo é que o testemunho sobreo ficcionista foi escrito pelos dois Hélios e, portanto, padece decontradições e equívocos horrendos.Começa assim: — "Lúcio Cardoso morreu no dia 23 desetembro e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado". As primeiraslinhas são do poeta. Em seguida, vem o político, o anti-Hélio: —"Nesse dia, intelectuais, artistas, professores, sacerdotes, mães defamília participavam de um ato público contra a realização da VIIIConferência de Exércitos Americanos". Só não entendi por que "mãesde família" e não também "pais de família". De resto, uma mãe defamília, quando em ação política, não está ali em função de suamaternidade, mas por motivos outros, políticos, ideológicos etc. etc."La Pasionaria" tinha uns oito filhos, mas seus partos nada tiveram aver com o seu fervor socialista. Bem. Eis o que eu queria perguntar:— por que falar em passeata, por que, se Lúcio Cardoso era aantipasseata, era a negação da passeata? E, de repente, comecei arilhar os dentes, no pavor de que me saísse um súbito e aviltadoLúcio Cardoso de passeata. Tempos atrás, escrevi que a únicasolidão da literatura brasileira era Guimarães Rosa. Não falei deoutras e totais solidões: — de Lúcio Cardoso, Octavio de Faria etc.etc.Em dado momento, diz o artigo: "[...] capitalismo queamesquinha, degrada e coisifica o ser humano" e, portanto, "o amorhumano". O articulista diz isso fremente, com o seu tão conhecidogosto pelo patético. Realmente, o capitalismo não é flor que se cheiree muito menos o socialismo que as passeatas propõem. Amigos, àsvezes um pequenino, um ínfimo, um individualíssimo episódio abreuma janela para o infinito. Vejam o nosso jantar. O capitalismonunca me impediria de jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do amor que não o deixa comer um bife comigo, um doce efranciscano bife.
[8/10/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...