O NEGRO AZUL

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Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosaangústia. Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico: —era um sofrimento menor e indefinível. Paro de bater à máquina epuxo um cigarro. Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fuiao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá.Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligiaporque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê.Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. "Falta algumacoisa", repetia para mim mesmo.

 Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e nãoposso. De repente, há um clarão interior: — as polainas! Eu sentia,exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei,mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainasdesapareceram da cidade, do país. São antigas, espectrais, como oguarda-chuva de Paulo de Frontin. Será que alguém as usa?Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergunta que me faço: —"Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?". 

Um deles foi o dr. Jacarandá. Outro: o cidadão Pingô. Mas oúltimo, exatamente o último que vi de polainas foi um preto, oficial deJustiça. Sempre digo que nunca se viu, neste país, um negro decasaca. É verdade. Os nossos patrícios de cor já usaram tudo e, sequiserem, até folha de parreira, menos casaca. Estou para fazer umatragédia racial, cujo título é o seguinte: — O negro azul. Morava o"negro azul" num pardieiro, em Del Castilho. De manhã, entrava elena fila do banheiro coletivo. Até que, um dia, às dez horas da manhã,todos o viram sair de casaca. Casaca e cartola. Não tomou um táxi, um ônibus, um bonde ou taioba. Levou a casaca a passear pelasruas e a pé. O desfile começou às dez da manhã e só parou à meianoite. Exatamente à meia-noite, atirou-se debaixo de um ônibus.Ninguém soube jamais que a casaca era o seu protesto contra oBrasil. 

Volto ao oficial de Justiça. Fisicamente enorme, era um negroplástico, lustroso, ornamental. E tinha uma voz de Paul Robeson, asventas de Paul Robeson, os beiços de Paul Robeson. Vou eupassando pela rua Senador Furtado (ou seria Senador Pompeu). E,súbito, vejo adiante um ajuntamento. O brasileiro se incorpora aqualquer grupo de mais de cinco pessoas. De mais a mais, temos afascinação do escândalo. E eu, da esquina, já ouvia o berreirotremendo, gritos de mulher etc. etc. 

Tantos anos depois, ainda vejo o Paul Robeson em todo oesplendor de sua figura e de suas polainas. Vocalmente, tinha apotência de um barítono, ou baixo cantante, desses que exigem aacústica de uma catedral, a cúpula de uma catedral. Enchia a rua, obairro, com o seu clamor: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!". Láestavam elas, as polainas. O homem andava de um lado para outro.Bem vi que as polainas o desagravavam da frustração da casaca.Soltava a voz: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!". 

Em três ou quatro minutos, vim a conhecer a história toda.Aquilo era um despejo. O crioulão de polainas estava ali como oficialde Justiça. Outros crioulões, e um branco sarará, iam e vinham,trazendo os móveis e empilhando tudo na calçada. Quanto à mulherdos gritos (e continuava gritando), era viúva e mãe de cinco ou seisfilhos. Há uns três meses o marido morrera tuberculoso e deixara,para a mulher, além das dívidas, a própria doença. 

Cabe então a pergunta: — e de onde vinha a magnífica, aestupenda, a ululante razão do oficial? Ei-la: — a viúva não pagava oaluguel há um ano. E, portanto, ele podia abrir sua razão de par empar, como uma manchete. Outrora, o brasileiro reagia muito contra a violência, mesmo justa, mesmo legal. Sempre um ou outro gritava: —"Não pode, não pode!". Mas ninguém insinuou um vago pio em favorda viúva e dos filhos. De vez em quando vinha a tosse afogar a suafúria. Ela se torcia e destorcia em náuseas medonhas. Houve ummomento em que, depois do acesso, cuspiu na palma da própria mãoe espiou o sangue. A vista do vermelho distraiu-a do despejo.Arquejou, sem desespero, apenas informativa: — "O falecido mechama". Não chorou mais, ou por outra: — continuou chorando, massem gritar. E as polainas eram mais insolentes do que esporas. 

Eis o que eu queria dizer: — vem daí, desse pequeno eilustrativo episódio, o meu horror às pessoas que têm razão e aproclamam com o impudor da manchete. Dirá o leitor que qualquerum pode ter razão. Nem todos, nem todos. Eu diria mesmo que sóalgumas almas seletíssimas, alguns espíritos de rara delicadezapodem tê-la. Lembro-me de outro episódio também perfeitamentecabível. Foi uma briga de mulheres. Uma senhora insultou outra. Porque, não me lembro. E o marido da ofendida foi tomar satisfações. Aculpada estava esperando criança. Mas o Fulano tinha razão; eporque a tinha derrubou-a a bofetões e mais: — pisou-lhe a barriga,chutou-lhe a gravidez. Correto. Tinha razão. 

Nas almas menos nobres, a razão pode subir à cabeça emforma de vil embriaguês. E os piores sentimentos, e as crueldadesmais secretas e inconfessas, e todos os demônios do orgulho sãoliberados. Tudo que sei da vida ensina que a razão pode perder anossa alma e repito: — pode destruí-la. 

Fiz a volta imensa para chegar à juventude. Vocês meentendem. Falo dessa figura impessoal, sem cara, sem nome, que é"o jovem". Eis o seu drama: — mesmo sem razão, ele a tem. É umarazão que não lhe custa um esforço, um mérito, um sacrifício, umaconquista. Tem razão porque é jovem. Não sei se vocês leram umrecente artigo do dr. Alceu. Vale a pena. 

(Claro que não estou falando de razão em cada caso concreto e específico. Refiro o problema vital que se está criando com umadesfaçatez inédita.) Todo o artigo do dr. Alceu é muito curioso. Masem dado momento descobre o notável pensador a "razão da idade". Éfantástico. 

A razão da idade muda todas as relações e todos os valores.Nem importa o que faça "o jovem". Incendeia a França. Temdezessete, dezoito, 22 anos. E basta. Arranca os paralelepípedos evira os carros. Pode fazê-lo porque tem no bolso a triunfal certidão deidade. Se nasceu no ano X, tudo lhe é permitido. Estão aí o jornal, orádio, a TV para justificá-lo, para absolvê-lo. Há uma "Moral daIdade", assim como há uma "Igreja da Idade". Conheço sacerdotesque só confessam "o jovem". Todos põem na mão do jovem, comouma bomba, a razão absoluta. O mundo deixou de ser dos "maisvelhos". Mas pergunto: — que fará "o jovem" com sua onipotência? Arazão da idade pode destruir o mundo. 

[1/7/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora