O "VELHO"

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Em recente confissão, contei a minha visita a uma grã-finaque, de três em três meses, é capa de Manchete. E, de fato, sempreque Justino Martins está em apertos, vai ao arquivo e apanha a carada minha belíssima anfitriã. O leitor nem desconfia que já viu amesmíssima capa umas quinze vezes. Não há nada mais parecidocom uma grã-fina do que outra grã-fina. Por dentro e por fora, todasse parecem. Quem viu uma, viu as outras.Entro no palácio e nada descreve a minha perplexidade.Conheço, de longa data, a dona da casa. Mas como identificá-la, se látodas se pareciam entre si como soldadinhos de chumbo?Cumprimentei umas oito, na ilusão de que era a própria. Até queuma delas, ligeiramente mais lânguida, ligeiramente mais afetada doque as demais, suspirou: — "Até que enfim veio à minha casa!". Fezse luz em meu espírito. Era aquela.Bem. Estou-me perdendo no secundário em prejuízo doessencial. O que eu queria dizer é que lá passei umas cinco horas. E,até o fim da noite, só se ouviu um nome e só se falou de uma figura:— Marx. Tudo era marxista. O mordomo de casaca devia ser outromarxista. Idem, os garçons dos salgadinhos, uísque e champanhe. EMarx não era apenas Marx. Não. De um momento para outro, passoua ser "o velho". Damas e cavalheiros diziam "o velho" com umasalivação intensa.Foi quando, a folhas tantas, alguém lembrou que "o velho" eradado a furúnculos. Houve um frêmito de volúpia geral einconfessável. Parece meio difícil emprestar-se qualquertranscendência a uma furunculose. Pois bem. Havia, ali, um tal clima marxista que os furúnculos do "velho" pareciam maisresplandecentes do que as chagas de Cristo. Os decotes palpitaram.Os cílios postiços tremeram. Havia como que uma voluptuosidadedifusa, volatizada, atmosférica. E, de repente, Marx deixava de ser oprofeta, o gênio, o santo. Parecia mais um fauno de tapete, torpe esenil. Ao passo que as damas presentes seriam ninfas também detapete.Por aí se vê que uma simples furunculose pode deflagrar ummisterioso surto erótico. Saí de lá às quatro da manhã e sem medespedir. Não foi incivilidade, absolutamente. É que eu reincidia namesma confusão visual. Como reconhecer a anfitriã, se todas aspresentes eram iguaizinhas umas às outras? Vim para casa epensava em tudo que vira e ouvira no sarau grã-fino.Eis o que eu pensava: — "Como a nossa alta burguesia émarxista!". E não só a alta burguesia. Por toda a parte, sóesbarramos, só tropeçamos em marxistas. Um turista que por aquipassasse havia de anotar no seu caderninho: — "O Brasil tem 80milhões de marxistas". Hoje, o não-marxista sente-se marginalizado,uma espécie de leproso político, ideológico, cultural etc. etc. Só umherói, ou um santo, ou um louco, ousaria confessar, publicamente:— "Meus senhores e minhas senhoras, eu não sou marxista, nuncafui marxista. E mais: — considero os marxistas de minhas relaçõesuns débeis mentais de babar na gravata".Mas contei o episódio da furunculose para concluir: — comonós conhecemos Marx! E o conhecemos na sua intimidade maisdoméstica, prosaica e profunda. Somos autoridades em seusfurúnculos. Do mesmo modo, estaremos informadíssimos sobre assuas tosses, bronquites, asmas, aerofagias etc. etc. Resta apenasuma pergunta: — e teremos a mesma intimidade com os seusescritos? Aqui se insinua a minha primeira dúvida.Senão, vejamos. Há três ou quatro dias, fui eu a um saraupolítico. Lá, como no grã-finismo, o marxismo reinava. Cheguei disposto às provocações mais sórdidas. Meus bolsos estavamentupidos de notas. Reuni a fina flor da "festiva" e comecei: —"Venham ouvir umas piadas bacanérrimas. Ouçam, ouçam!". E, derepente, tornei-me extrovertido, plástico, histriônico, como umcamelô da rua Santa Luzia. Promovia idéias como quem vendelaranjas, canetas-tinteiro, pentes, isqueiros, calicidas.Logo juntou gente.,E comecei a ler frases de recente leitura: —"O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes — Alemanha,França, Inglaterra, Estados Unidos". Estes últimos "eram o país maisprogressista do mundo". "Contra o imperialismo russo, a salvação é oimperialismo britânico." Outra: — "O defeito dos ingleses é que nãosão bastante imperialistas". Quanto à história, "avança de leste paraoeste". O colonialismo é progressista porque os povos domináveis ecolonizáveis só têm para dar "a estupidez primitiva". O budismo é "oculto bestial da natureza".E que dizer da China? É uma "civilização que apodrece". Poroutro lado, a vitória dos Estados Unidos sobre o México, em 1848, foiuma felicidade para o próprio México. Dizia o autor, que eu citava: —"Presenciamos a conquista do México e regozijamo-nos porque estepaís, fechado em si mesmo, dilacerado por guerras civis e negandose a toda evolução, seja precipitado violentamente no movimentohistórico. No seu próprio interesse, terá que suportar a tutela que,desde este momento, os Estados Unidos exercerão sobre ele".Por outro lado, é maravilhosa a sujeição da Índia à Inglaterra."A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, meragentalha." Ainda sobre os eslavos: — "Povos piolhentos, estes dosBálcãs, povos de bandidos". Os búlgaros, em especial, são "um povode suínos" que "melhor estariam sob o domínio turco". Em suma:todos esses povos eslavos são "povos anões", "escórias de umacivilização milenar". Mais ainda: — "A expansão russa para oOcidente é a expansão da barbárie" etc. etc.Durante duas horas li para a "festiva". Por fim, embolsei as notas e, arquejante, falei: — "Vocês ouviram. O autor ou autorescitados já morreram. Quero saber se teriam coragem de cuspir nacova de quem escreveu tudo isso?". E outra pergunta: — "Quempensa assim, e escreve assim, é um canalha? Respondam". Emfulminante resposta, todos disseram: — "É um canalha!". Ainda osadverti: — "Calma, calma. São dois os autores! Vocês têm certeza deque são dois canalhas? E canalhas abjetos?". Não houve uma únicae escassa dúvida. Os marxistas ali presentes juraram que os doisautores eram "canalhas" e abjetos. E, então, só então, alcei a fronte eanunciei: — "Agora ouçam os nomes dos canalhas". Pausa e disse: —"Marx e Engels". Fez-se na sala um silêncio ensurdecedor. Repeti:"Marx e Engels, os dois pulhas, segundo vocês".Tudo aquilo estava em Marx et la politique internationale, porKostas Papaloanou etc. etc. Os dois, Marx e Engels, eram paladinosfanáticos do imperialismo, do colonialismo, admiradores dosianques, russófobos. Disseram mais: — "A revolução proletáriaacarretará um implacável terrorismo até o extermínio de todos essespovos eslavos".Os marxistas que me ouviam eram poetas, romancistas,sociólogos, ensaístas. Intelectuais da mais alta qualidade. Eentendiam tanto de Marx quanto de um texto chinês de cabeça parabaixo. Eis a verdade: somos analfabetos em Marx, dolorosamenteanalfabetos em Marx.

 [3/5/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora