DA LINHA CHINESA

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Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo deleite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É naesquina de Mem de Sá com Tenente Possolo. Eu tenho, se assimposso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nuncahouve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhasanalgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa,excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta desua dor e, quase diria, saudades de sua acidez. 

Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional,começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato asua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto amais, nem um minuto a menos. Levanto-me e vou para o Cabaré dosBandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paroem cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu ladoestava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensascosteletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperouque o sinal abrisse para os carros.

Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando. E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceudo meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estariatestando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirantevelocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, semprede perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio,imaginei: — "Vai morrer". Se fosse um velho, ou uma senhora, oualguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado. 

Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — nãoaconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamenteintacto. Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens,buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarralancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um dessesmilagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótesenenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessiaencantada. A velocidade o poupou como a um santo.

 Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovemlevaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, portrês automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a caraenfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguémtalvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficarialambendo o silêncio. Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, ojovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério. 

Hoje, não. Há, por toda a parte, a "jovem revolução". É ummovimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é oCarlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França,nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam? Segundose diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes.Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E osjovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carrose incendiaram a Bolsa. Na China, a guarda vermelha caça osinimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao sãoexterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas. 

Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a "jovem revolução" émundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamentepositivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensõesmundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos,também minoritários, afirmam o seguinte: — a "jovem revolução"nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem. E,com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem,já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

 Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os "maisvelhos" resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própriaonipotência? Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que,insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e sóentão atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículostambém bajulam a "jovem revolução".

 Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro.Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático. Pára na minhamesa. Diz, gravíssimo: — "Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhorler". Era um recorte de jornal; explica: — "É uma entrevista daCacilda Becker". Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: —"Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem". Com talafirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo daprimeira divergência. 

Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contrao jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não soucontra ou a favor de ninguém, automaticamente. Expliquei que amais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete,dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gêniosde todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimoe simpaticíssimo da imaturidade. De vez em quando, isto é, dequatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos,fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezesseteanos. Viro-me para o rapaz: — "Queres que eu te admire? E te façamanchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud".

 Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estavainteressado em poesia. Fiz um alegre escândalo: — "Não é possível!Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!".Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estavainteressado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo deirritação. Disse-lhe: — "Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?". Disse, ofegante davaidade: — "Sou da linha chinesa".

 Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista daminha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapazalgumas observações de minha experiência teatral. Eis a minha tese:— uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Porexigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiqueimeu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outragrande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferiauma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa. 

A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder.Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece queeu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — "O mundoé dos jovens". A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada.O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Masvejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, ocrime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos quetêm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda umadilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda umadesesperada lucidez. Não era bem assim que eu queria dizer. Faltamme palavras.

 [20/6/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora