Aqui mesmo, se não me engano, escrevi sobre a religiosidadeprofunda do Brasil. Examinem todos e cada um. O brasileiro,inclusive o nosso ateu, é um homem de fé. Conheço vários marxistasque são, ao mesmo tempo, macumbeiros. E um povo que podeconciliar Marx e Exu está salvo e, repito, automaticamente salvo.Imaginem vocês que, outro dia, passei na casa de um ateupatrício. É uma excelente figura de marido, pai, funcionário e rubronegro. Mas esse meu amigo só fala aos berros, como o Salim Simão.E seu bom-dia, como o de Salim Simão, é um soco nos tímpanos.Coisa curiosa! Gosta de parecer um anticristo. Na noite em que ovisitei, desabou uma tempestade.Legítimo mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Costumo dizerque a grande tempestade é a de ópera. A orquestra imitando trovãoconvence mais do que o próprio trovão. E nenhum raio, por melhorque represente, assusta mais do que um relâmpago de curtocircuito. Justamente, parecia uma tempestade de palco. Todos ospresentes rilhavam os dentes de pusilanimidade. Quando vi a donada casa benzer-se, bem a entendi. Não há ocasião mais própria paraum arroubo místico do que um toró. Sei de conversões ocorridas emtemporais desvairados.E, por um momento, imaginei que o mau tempo ia precipitaraquele ímpio, aquele desalmado nos braços do Eterno. Pelocontrário. De repente, um raio estala e quase nos fuzila. A dona dacasa enfiou-se debaixo da mesa. E foi esse o momento escolhido paraas blasfêmias do ateu. Ele urrou, no meio da sala, trepado numacadeira, como um Antero de Quental. Esganiçava as gargalhadas. Do seu lábio pendia a baba elástica e bovina da impiedade.Ninguém se indignou, ali, e explico: — são obviamenteincompatíveis o pavor e a indignação. Graças a Deus, a tempestadesumiu como veio, de repente. Mais uns quinze minutos, e o céulimpou. Fui espiar da janela. Vi, "pálido de espanto", como no soneto,estrelas jamais concebidas. Voltei para a sala, exausto do meu terror.O ateu arquejava, ainda, do riso torpe.E, súbito, o caçulinha começa a chorar. Os donos da casa searremessaram. Primeiro, a mãe e, depois, o pai carregaram omenino. Mas não houve colo que o calasse. Á tia solteirona jápensava em leucemia. E o caçulinha berrava com um brioinexcedível. Súbito, o pai desatinado é atravessado por uma luz;soluça para a mulher: — "Faz aquela simpatia! Faz aquelasimpatia!".Ou a própria mãe, ou a tia, cola na testa do menino umalgodãozinho molhado. Houve, então, nas barbas estarrecidas dafamília, o suave milagre. Efeito fulminante da simpatia. A criançaparou de chorar, instantaneamente. O pai, eufórico, gabava-se: —"Não disse? Não disse?". Vira-se para mim e pisca o olho: — "Tiro equeda! Não falha!".E, então, vi tudo. Aquele era o único ateu que eu conhecia navida real. Blasfemara contra o raio. Mas bastou uma dor debarriguinha para que ruísse, em cacos, todo seu ateísmo. E assim afé do brasileiro assume as formas mais imprevisíveis e, até, cômicas.Ao menor pretexto emocional, aquele ateu de papelão há de acreditaraté em Papai Noel.Mas estou-me perdendo no acessório e esquecendo o essencial.Eis o que eu queria dizer: — se eu fosse marxista ou pertencesse aqualquer ramo das nossas esquerdas, estaria, hoje, num pânicoprofundo. Profundo e justificado. É que todos os jornais abremmanchetes deste teor: — "Negociações de paz iniciam-se em Paris".Por se tratar de um fato catastrófico, o jornal devia pingar-lhe um apavorado ponto de exclamação.Repito: — se eu fosse uma flor das esquerdas, estariarecorrendo a simpatias, como o ateu da dor de barriguinha. Sim,estaria apelando para o Sobrenatural. Iria até à macumba parafrustrar essa paz amaldiçoada. O leitor há de perguntar, com a suacrassa e ignara ingenuidade: — "Mas por quê?".Vamos lá. O Vietnã pode ser guerra para todo mundo, menospara as esquerdas brasileiras. Para as nossas esquerdas, o Vietnã éum meio de vida. Há sujeitos, aqui, que vivem do Vietnã. Não só osintelectuais, não só as grã-finas, não só os estudantes. Conheço umalfaiate que se tornou um próspero alfaiate porque vocifera como umvietcong. Aí está dito tudo: — ninguém consegue ser um bom alfaiatesem xingar os Estados Unidos por conta do Vietnã.Vejam que invejabilíssima situação: — o sujeito daqui, semarredar pé do Antonio's, ou da praia, sem correr o menor risco e, aomesmo tempo, fazendo poses e, repito, fazendo quadros plásticoscontra os norte-americanos. É o patético, raiando pelo sublime. Há,entre nós e o perigo, toda uma sábia e inexpugnável distância. Porcausa do Vietnã, o sujeito faz artigos dominicais, arranja namoradas,passa por inteligente, moderno, libertário etc. etc. Ir ao jogoFluminense x Vasco é mais arriscado para nós do que essa guerraadmirável.E, súbito, vem a manchete e diz que Washington e Hanóicomeçam as discussões de paz. É o que eu chamaria de ameaça dedesemprego em massa. Vamos rezar para que fracassem osentendimentos; e que a guerra continue até o fim da nossa geração.Mas se, por fatalidade, Washington e Hanói chegarem a um acordo ecaírem nos braços um do outro, aos beijos, aos soluços, que faremosnós? Cada época vive de uns tantos assuntos obrigatórios e fatais. OVietnã é o grande assunto do nosso tempo. Hoje, o nosso berro, onosso gesto, a nossa ênfase, o nosso palavrão, as nossas pequenas, anossa retórica — dependem do Vietnã. Ou por outra: — todos dependemos do que se esconde por trásdo Vietnã, ou seja, o ódio aos Estados Unidos. O Vietnã nãointeressa a ninguém, a não ser como pretexto para o ódio. Masimaginemos um mundo sem o Vietnã. Hanói e Washingtonconcordam, fazem a abominável paz. Cessam os bombardeios. Nemmortos, nem feridos, nada. Eis as nossas esquerdas esvaziadas. Etendo que vagar, por entre mesas e cadeiras, sem função e semdestino. Por outro lado, d. Hélder e dr. Alceu terão que aturar,novamente, o abominável Sobrenatural.[15/5/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...