A IRA DE VANDRÉ

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Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores dasgerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia dopatético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra;morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou atéde asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem,com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam amorta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em quea morte era mais promocional do que a vida.

 Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é oEça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cenadeliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como umsanto. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali,olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvezcamélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma nobre einconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta:— "Não dança?". O rapaz ergue a fronte diáfana e responde: —"Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?".

 Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não podesorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal,toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor social, humano,histórico, é o nosso Geraldo Vandré. Quem não o conhece? Com oseu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se umasúbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam osrádios, vejam as TVS. A fulminante celebridade de Vandré é de umaevidência estarrecedora. 

E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram.Vandré concorria ao Festival com a sua "Pra não dizer que não faleide flores". Segundo se diz, ele devia tirar o primeiro lugar. Vai o júri edá-lhe um mísero e franciscano segundo lugar. Antes, porém, depassar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré.Vamos lá.

 Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe: —"Boa noite". Ora, a um cumprimento responde-se com outrocumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fazer. O Vandré,porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro.Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosseagredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado:— "Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?".O outro tomou o maior susto: — "Eu não tive intenção! Eu não tiveintenção!". E, realmente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção,senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos: — "Você nãovê que estão morrendo no Vietnã?". O autor do imprudente "boanoite" quase correu, fisicamente, do Vandré.

 Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagerocaricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Vietnãestá lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Vandré, adistância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reagecomo se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisaestivesse juncado de vietcongs defuntos. Narrei o episódio paracaracterizar o artista: — será nosso contemporâneo apenas nosternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura dasgerações românticas. Já os familiares e conhecidos evitamcumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre.  

Dito isto, passo ao Maracanãzinho. Domingo, ia ser escolhida amúsica brasileira para o Festival Internacional da Canção. Não seipor que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré,que sua letra e sua música iam ser as ganhadoras fatais. Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum quequalquer competição, seja o prêmio Nobel ou de cuspe à distância,tem os seus imponderáveis. A começar pelos juizes. São quinzesujeitos e temos de admitir a "verdade de cada um", verdade que foi,como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seuspartidários, que eram numerosos e ululantes, estavammaravilhosamente certos da vitória.

 Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram "Sabiá", deChico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outroqualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonando paracasa: — "Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!". Seria umaglória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não temas reações de qualquer um. Assim como não admite que ocumprimentem, também não aceita um reles segundo lugar. Oresultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia.

 Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera umacolocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugarfosse a mais hedionda das lanternas. Os que estavam lá, noMaracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palcouma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara,o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e comprodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a bela, forte, crispada e jovemcara de Vandré.  

Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, osegundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu patético,mas o telespectador, sim. Para nós, de casa, a cara de Vandré tomoua expressão cruel, vingativa, de certas máscaras cesarianas. Lia-setudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelosseus fiéis, Vandré perguntou, de si para si: — "Abro ou não overbo?". Seria o comício.

 Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto nobolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hojecomício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, comperfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandrécomo um abismo; por outro lado, era amigo do Chico e do Tom. Maseis o que eu queria dizer: — um concorrente frustrado só deviaaparecer de máscara, como nos velhos carnavais. Apenas o primeirocolocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu.

 Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentesvitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essaconcessão às boas maneiras. Mas um artista não pode serconvencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o comício.Foi quando começou: — "Nem tudo é festival!". Disse isso e não foialém. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento.Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo eimpotente. 

Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim. Aosaber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribunda.Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jobim, navitória, devia ser exibida por todo o Brasil. Como é trágica a euforiado subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos,fez músicas para Sinatra, é uma glória internacional. Só faltou atirarbeijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americanoembolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe umfavor como se estivesse fazendo um favor ao favor. E o nosso Tom, aoimpacto do triunfo, quase foi para a tenda de oxigênio.

 [1/10/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora