Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo,entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aquidizendo o óbvio ululante. Paciência.) E não se trata do estilo derepresentação. Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde eum estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama dascamélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, oartista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com maiscerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.
Mas o que me impressiona não é dessemelhança decomportamento cênico. O artista mudou até na vida real. Voltemos,por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houvea primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram aFrança. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de umseio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeiraaudição do Danúbio azul.
Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz?Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora,todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma SarahBernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria umahumilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixãosuicida e homicida. O que a Duse amou D'Annunzio! O grandehomem estava, então, em furioso apogeu.
Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era umavergonha não ser amante de D'Annunzio. E a Duse o amou e, pior doque isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu"relações-públicas" espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, porfundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídiosou deixava de ser bilheteria.
Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vaipara um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. Asnossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguémque, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E,realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos. Aindaoutro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: —"Estou amando! Estou amando!". A mãe tremeu em cima dossapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça.Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a meninarecebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amorvirou doença.
Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lheachar a resposta: — "O que é que mudou essencialmente nas atrizes,nos atores, nos diretores?". Outra pergunta: — "E por que não hámais Duse, nem há mais D'Annunzio?". Imaginem vocês que, derepente, descobri toda a verdade.
Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker,Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saberque tratamento lhe deu Kleber Santos.) Mas aconteceu não sei o quee fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi aentrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobriqual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a dabelle époque. Uma é inteligente e a outra não.
Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava,simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer aunanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais umafrase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, nahora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão eeste redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensampensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras.) Pois bem. Oque a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando.
O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. Ejustiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somenteàs idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também aconsiderável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV éimagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade.Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, oclima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. MariaFernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outrasduas ou três verdades eternas.
A notável atriz está representando, no momento, uma peça dofalso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente,sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Netopediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer seteria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. MariaFernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim,respondeu: — "A peça é o problema de opção".
Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias seentreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas haviamais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas:— "O problema da nossa época é a opção". Alguns descontentes, quesempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem denovo, nem de profundo. Vejamos: — "O problema de nossa época é aopção". Isso, dito por qualquer outra, não teria maiortranscendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago "bomdia", dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. Ea "opção" da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo.Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: —"Inteligência aqui é mato".
Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas esaiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Masvoltemos ao nosso teatro. Tenho um amigo que é um retrógrado, umobscurantista, que os íntimos chamam de "a própria Idade Média".Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — "Eu, que sou aIdade Média" etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolávelnostalgia, as gerações românticas. Naquela época, o ator era grandeporque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensãodionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à "opção", não sei seela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos préfabricados. É difícil para o homem moderno ousar um movimentopróprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, desentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas.A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.
Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeiratrepou no automóvel e disse: — "Estamos cansados". Ninguémestava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar deuma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga.) Emseguida, ele acrescentou: — "Vamos sentar". Falava para a partemais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas,atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes,engenheiros (só não víamos um único preto ou um único operário).Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e nomeio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grãfina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com umvestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia. Todossentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D'Arc.
[30/7/1968]
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A Cabra Vadia
عشوائيNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...