Ah, gosto muito do Sábato Magaldi, o crítico paulista. Lembrome do nosso encontro, há anos, aqui no Rio, na esquina de SenadorDantas com Evaristo da Veiga. Eu não o via há meses. E ele mepareceu tão magro e tão só. O que me impressionou mais, porém, foio olho do amigo, e repito: — o olho de uma doçura intensa, quaseinsuportável. Com um retoque aqui e ali, o Sábato Magaldi seria umsanto, o primeiro santo da crítica teatral.
Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia falar da nossadiscussão sobre cinema. Era a época dos primeiros filmes coloridos.Há entre mim e o caro amigo uma série de cordiais abismos. Quandoescreve sobre o meu teatro, sinto que não é o crítico, mas o amigo,quase o irmão (quero crer que ele sempre reage como o amigo e oirmão das coisas). Eu era a favor do filme colorido, e Sábato, contra.Ele só entendia o preto-e-branco.
No meu espanto, perguntei-lhe: — "Mas que diabo! Você écontra a cor?". E eu não compreendia tal ressentimento visual.Discutimos uma boa meia hora. E, até o fim, o Sábato Magaldi foi omesmo e brioso paladino do preto-e-branco. Dizia eu: — "Vem cá,Sábato, vem cá". E insistia: — "Mas que diabo te fez o amarelo? E overde? E o azul? E o roxo?". Lembrei-lhe que Van Gogh gostava tantodo amarelo. O meu último argumento foi este: — "Você odeia o arcoíris?". Não o dissuadi. Hoje, imagino que o Sábato deva abominartambém o poente do Leblon porque a natureza não o fez em preto-ebranco.
Falei do cinema para chegar ao teatro. Quando começou ocinema, houve o vaticínio mundial: — "O teatro vai morrer". E mais tarde surgiu a televisão. Imediatamente, outros profetas anunciaramtambém que a televisão era o fim do teatro. Vejam como o teatro vivede mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passarlhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a telacinematográfica seja miguelangesca. (Contra a oposição solitária eressentida do Sábato Magaldi, a cor vingou triunfalmente.) Mas oteatro está vivo, o teatro é um cadáver salubérrimo.
Não sabemos se o cinema morrerá um dia, se outras técnicasvão devorar a televisão. Quanto ao teatro, quero crer que jádemonstrou a sua eternidade. Cabe então a pergunta: — e por quesempre existirá um palco e sempre existirá um elencorepresentando? Tem sido assim e assim será, para sempre. Podeparecer que o "grande artista" explica essa prodigiosa continuidade.Nem tanto, nem tanto. A eternidade do teatro depende mais docanastrão.
Foi mais ou menos isso que eu disse, no telefone, ao SábatoMagaldi. Imaginem vocês que o crítico ligou para mim, e vamos evenhamos: um interurbano é sempre uma altíssima demonstração deafeto. Lisonjeado, balbuciei: — "Quanta honra!". Não é sempre queum crítico, e dos mais lúcidos, e dos mais agudos, procura um autor.Conversa daqui, dali, e o Sábato acaba pedindo: — "Por que é quevocê não faz uma entrevista imaginária com a Cacilda Becker?". Foiaí que, dentro do meu ponto de vista, expliquei que a Cacilda tinhaum defeito: — era "a grande atriz". O Sábato não entendeu: — "Se égrande atriz, melhor". Reagi: — "Pior". E expliquei que é o canastraque, inversamente, nutre a continuidade teatral. O "grande ator" éum para 10 mil. Só a massa de medíocres pode alimentar milharesde elencos e milhares de repertórios.
Todavia, o Sábato, com sua bondade pertinaz e persuasiva,insistia: — "Pelo amor de Deus, faz a entrevista imaginária com aCacilda. Te peço como amigo". Eu preferia a canastrona, muito maisrepresentativa do que o gênio. A Duse ou Sarah Bernhardt é um corpo estranho dentro de sua geração. Mas o Sábato pedia; e quem,no céu e na terra, pode resistir ao Sábato? Suspirei: — "Está bem.Você manda. Vou entrevistar a Cacilda Becker". E, antes de medespedir, fiz o apelo: — "Me abençoa, Sábato, me abençoa". E oamigo, em sua infinita misericórdia, me abençoou.
Saí do telefone, isto é, não saí do telefone. Desliguei e,imediatamente, disquei para 01. Feita a ligação fulminante, uma vozfeminina atende. Peço: — "Quer-me chamar a Cacilda?". A respostafoi taxativa: — "Não mora aqui". Protesto: — "É esse o número,minha senhora. Cacilda Becker. Mora aí". E a outra: — "Engano". E,súbito, desconfio da verdade. Berro: — "É você que está falando,Cacilda? Sou eu, Nelson!". Há uma pausa dramática. Finalmente,explode a voz feminina: — "É mesmo, é mesmo! Agora me lembro.Cacilda Becker. Eu era Cacilda, fui Cacilda. O sobrenome é Becker?Fui Cacilda Becker". A conversa estava meio alucinatória. Numaimpressão profunda, pergunto: — "Está-me ouvindo, Cacilda? Esteja,hoje à meia-noite, no terreno baldio. Você vai-me dar uma entrevistaimaginária. Entendeu? Uma entrevista imaginária, na presença dacabra vadia". A grande atriz pluralizou: — "Lá estaremos". E eu: —"Boa noite". Ela respondeu em voz pungente, em voz plangente: —"Boa noite".
Às dez para meia-noite, estou eu no terreno baldio. Tomeitodas as providências. Reuni os gafanhotos, sapos, corujas,caramujos e minhocas. Fui de um em um, pedindo pelo amor deDeus: — "Modos, hem; modos!". E, súbito, vem correndo umcaramujo: — "Está chegando a passeata". Pulo: — "Que passeata?Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker.Só a Cacilda e mais ninguém". Mas era a estarrecedora verdade. Aolonge, empunhando archotes, vinha a passeata. E, no meio, hirta,sonâmbula, vestida de Ofélia, pude ver a minha entrevistada, CacildaBecker.
Aterrado, esperei aquela massa ululante. Ouvia-se o coro: — "Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!". O vozerio subia aos céus. Lá emcima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeirossobre os manifestantes. A quinze metros do local, o VladimirPalmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — "Classeteatral!". Silêncio. E o Vladimir: — "Estamos cansados. Vamossentar". A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líderdeixou passar cinco minutos; e comanda: — "Já descansamos.Vamos marchar!". E todos marcharam os quinze metros quefaltavam. Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda:— "Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eusó convidei você, Cacilda!". E a atriz: — "Eu não sou Cacilda. Sou apasseata!". Lá estava Paulo Autran: — "Você, Paulo Autran, aomenos você, é Paulo Autran?". Resposta: — "Sou uma assembléia!".Ao lado, vi o Ferreira Gullar: — "Ferreira, diga, berre: — eu souFerreira Gullar!". Retruca: — "Eu sou um abaixo-assinado! Sou umacomissão de intelectuais!". Em seguida, puxou um isqueiro eincendiou um exemplar de A luta corporal. Vozes repetiam: — "Souum comício! Sou um panfleto! Sou a Classe!". Cada qual eraninguém. Olho aquelas caras. Todos tinham perdido a noção daprópria identidade. Recuo, apavorado. Uma coruja rola com ataque.E, então, a marcha continua. A massa coral repetia: — "Par-ti-ci-pação! Par-ti-ci-pa-ção!". A cabra vadia veio sentar-se no meio-fio ecomeçou a chorar. As estrelas atiravam catálogos telefônicos sobre apasseata. Foi um caso sério.
[25/7/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...