OS ABNEGADOS

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Há uma página de Os Maias que não consigo esquecer.Imaginem um ministro de Educação que não tinha cara, só tinhatesta. Nem um mísero e escasso fio de cabelo. Tamanha testa foi oseu destino e sua glória. Ele não precisava ciciar uma palavra, oudesdenhar um gesto, ou piscar um olho. A testa bastava e repito: —a testa era a evidência mesma do gênio.

 Uma noite, está o nosso ministro numa recepção. Cercado dedamas e cavalheiros por todos os lados. E, súbito, alguém fala naInglaterra. S. exª achou bonito o nome, o som. Inglaterra. E vira-se,então, para o Ega, que estava a dois passos. Pergunta-lhe: — "Sabese, na Inglaterra, há folhetinistas de pulso, como aqui? Talentoscomo os nossos?". Primeiro, o Ega tem uma vertigem diante da testainaudita. Em seguida, informa: — "Lá não há literatura". Diz então oministro: — "Logo vi. Povo prático, essencialmente prático". 

Eis o que eu queria dizer: — sou um pouco essa admiráveltesta de Os Maias. Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tantotempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich,dos Dumas pai, dos Ponson du Terrail. Outro dia, vou a umafestinha em casa de um amigo. E, de repente, vem a dona de casa,com um pratinho. Pergunta: — "Aceita rocambole?". Esse nomearremessou-me no passado profundo. "Rocambole" era o nome deum herói de Ponson du Terrail e título também do próprio folhetim.Disse, radiante: — "Pois não, pois não". E os dois ficaramjustapostos na minha memória: — o personagem e o doce, o folhetime o prato. 

Essa mesma experiência proustiana tenho eu quando me chega uma carta anônima. E aí está uma marca de leituras pasmas.Como se sabe, a carta anônima é um dos artifícios mais felizes dovelho folhetim. O marido a recebia (e o marido era sempre sórdido eobeso). Lá vinha escrito: — "Considere-se miseravelmente enganado".E se disparava a intriga romanesca. Na altura dos meus oito, nove,dez anos, daria tudo para receber uma torpe carta anônima.

 Fiz a introdução acima para contar o que me sucedeu ontem.Vou ler a minha correspondência e já no primeiro envelope tenho oimpacto. É que a carta não trazia assinatura. Ah, o homem diz, nacarta anônima, o que não ousaria dizer ao padre, ao psicanalista e aomédium, depois de morto. O menino do folhetim veio à tona. Comeceia ler. 

Começava assim: — "Nelson, você é um traidor". Minhacuriosidade assumiu proporções inéditas. Traidor, eu? Da pátria,talvez. Entre parênteses, assim como há uma rua Voluntários daPátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, ruaTraidores da Pátria. Em seguida, a carta anônima informa que soutraidor da própria classe. Qual delas? Tenho duas: — por um lado,faço jornalismo; por outro lado, faço teatro. Segundo a carta, eratraidor da classe teatral. Quando cheguei à última linha, voltei àprimeira e reli tudo. Só então fui-me olhar no espelho. E vi, naminha cara, o esgar hediondo da traição. 

Fica de pé a pergunta: — e por que traidor? Vejamos os fatos.O Estado de S. Paulo fez um editorial, ou dois editoriais, quedesagradaram a classe. E que faz a classe? Reúne-se e, porunanimidade, resolve devolver os Sacis que o velho órgão distribuientre os melhores de cada ano, no cinema e no teatro. E, nãosatisfeita, a assembléia decidiu, e por outra unanimidade, umapasseata-monstro.

 Mas, vejamos. A classe ia marchar contra quem? Aqui começao doloroso, o comprometedor, o humilhante: — contra um jornal. Seos meus colegas saíssem pelas ruas paulistas decapitando marias antonietas e derrubando bastilhas, eu estaria admirando aferocidade teatral. Mas a nossa vítima é uma redação, vejam vocês,uma redação. Por outro lado, tenho algumas dúvidas perturbadoras.

 O Saci é uma pequena estatueta. E se fosse um prêmio emdinheiro? Repito: — se o Saci fosse um cheque de 5 milhões decruzeiros? E nem precisa tanto. Imaginemos um cheque maismodesto de 1 milhão ou menos do que isso: — de 500 mil cruzeirosantigos. Pergunto se os manifestantes devolveriam o dinheiro vivo.Duvido, isto é, afirmo que ninguém devolveria um centavo. Portanto,vamos desconfiar de um desprendimento que não desembolsa umtostão. 

 Nem considero a unanimidade um argumento decente. Quantoao meu caso pessoal, estou farto de repudiar unanimidades. Alémdisso, como eu sou um premiado, e não vou devolver Saci nenhum,não existe tal unanimidade. Mas, vamos admitir que todos,absolutamente todos, estejam contra O Estado de S. Paulo. Euestaria a favor. Não me solidarizo com os erros, os equívocos, deminha classe. Diz a carta anônima: — "Uma classe não erra. Umaclasse sempre tem razão".

 Nada mais falso. Homens; classes, povos são suscetíveis dosmais sinistros enganos ou das mais hediondas torpezas. O motivo e aorigem de tudo foram dois editoriais. Que fossem duzentos. Qualquerjornal tem o direito de escrever como quiser e o que quiser, sem darsatisfações a ninguém. Falo por experiência própria. Ao longo devinte anos, fui o único autor obsceno do Brasil. E, durante esseperíodo, fui chamado de "tarado" em manchete. Os críticos mexingavam de "cérebro doentio", de "caso de polícia", de "loucovarrido". O dr. Alceu Amoroso Lima disse horrores de mim. Emmomento nenhum, neguei-lhe o direito de me dizer tais horrores.Sempre quis a imprensa livre.

 Diz a carta que a classe quer a liberdade. Ah, os nossoslibertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade. Dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berramcontra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a suaditadura. A passeata que se fez é, precisamente, contra a liberdadede imprensa. Queremos um teatro livre. E, ao mesmo tempo,pretendemos exercer uma censura, vejam vocês. Os censores daimprensa somos nós, atores, atrizes, autores. 

Em nome da liberdade, agredimos a liberdade. Ainda bem queo nosso heroísmo começou e acabou na devolução dos Sacis. Eassim o pessoal de teatro desceu do palco e foi às ruas, representarde libertário. 

[22/6/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora