Entro na redação e o Carlos Tavares avisa: — "Olha. Ocorrespondente do Paris-Match telefonou". Ora, sou, como se sabe,um pobre jornalista brasileiro, que tem de espremer o cérebro parasubvencionar o sapato da mulher e o leite do caçula. Trabalhodemais e, como se sabe, jamais o trabalho promoveu a ascensãosocial e econômica de ninguém. Para um brasileiro pobre e, além depobre, medíocre, um telefonema do correspondente do Paris-Matchabre uma janela para o infinito. Ainda perguntei ao Tavares: — "Tenscerteza de que sou eu mesmo?". O colega só faltou estender a mãosobre uma bíblia invisível e jurar.Portanto, era mesmo comigo. Sentei-me à mesa para escrever aminha confissão. Logo, porém, tornaram-se irrelevantes,secundários, os problemas sociais, humanos, políticos e estilísticosde minha coluna. Só o telefonema importava. O que me fascinava eraa hipótese de uma entrevista. Imaginei-me falando para o mundo.Mas logo travei a minha fantasia. Uma entrevista parecia demais e,realmente, eu não merecia tanto.Fosse como fosse, o simples fato em si mesmo era uma honra.E, de repente, o Carlos Tavares me chama: — "Paris-Match, outravez!". Corro, com uma sufocante dispnéia emocional. Digo: — "Alô!Alô!". Era, sim, o homem. E começou a falar. Mas ai, não se tratavade mim, nem de meus feitos, livros, peças e metáforas. Ele queriaapenas informações sobre a "grã-fina gorda". Por um momento, aminha perplexidade assumiu proporções trágicas. Ainda repeti: —"Grã-fina gorda?".Custei a me lembrar que, dias antes, numa de minhascrônicas, falei, de passagem, numa "grã-fina" realmente gorda erealmente patusca como as viúvas machadianas. O Paris-Matchqueria saber se era fantasia ou fato. O curioso é que não era oprimeiro que me interpelava a respeito. Inúmeras pessoas ligarampara mim, intrigadíssimas: — "Mas existe mesmo? Ou é piada?".Muitos achavam que se tratava de uma gorda irreal, de pura eirresponsável ficção. Tive de explicar que não, que absolutamente.Existia, sim. Dei a minha palavra de honra.Ao correspondente do Paris-Match forneci informaçõesconfidenciais: — "É uma das amantes espirituais do Guevara". Essedado íntimo, glorioso e revolucionário, causou o melhor efeito. Mas acuriosidade do colega francês era insaciável. Queria saber mais, cadavez mais. Contei-lhe, então, o drama da ilustre senhora. Eis o caso:— era gorda sem o saber ou sem ligar à própria gordura. Até que, umdia, alguém lhe deu um retrato de Guevara, com aquele olhar desanto e aquela barba de fauno. Foi uma paixão fotográfica e àprimeira vista.Só então baixou-lhe a súbita e inexorável consciência daprópria gordura. Por uma dessas coincidências, que o diabo explica,começou a receber telefonemas anônimos, em que era chamada de"Abade da Brahma" para baixo. Passou a odiar as balanças, eexplico: — a balança é o espelho das gorduchas. Ora, a classe médiasuporta a obesidade mais generosa. Não o grã-finismo. O grã-finismoé extremamente escasso de cadeiras, bustos. E pior: — o retrato deGuevara era mais inclemente do que uma balança. O simples olhardo Che a esmagava.Do outro lado da linha, o correspondente do Paris-Match dizia:— "Muito interessante, muito interessante!". Continuei: — até que,certo dia, em conversa com um. padre de passeata, ela abre ocoração. Dizem que grã-fina não chora, mas ela chorou: — "Eu mesinto uma baiaca!". E, então, o sacerdote começa: — "Jáexperimentou passeata?". A princípio, não entendeu. Com fina malícia, o outro insinua: — "Passeata é muito bom. Para emagrecer,não há como a passeata". E o religioso citou o próprio exemplo: —"Estou com menos barriga". Para convencê-la, girou como umamodelo profissional. Ou por sugestão, ou porque queria ser amável,ela admitiu: — "É mesmo! É mesmo!". E disse mais, o padre,gravemente: — "A passeata faz bem à aerofagia. Melhor do queremédio da Flora Medicinal".Desde então, a única grã-fina gorda da vida real não perdeuma. Tem uma frota de intelectuais, de estudantes, que avisam: —"Hoje tem". E lá vai ela, feliz. Quando houve a histórica dos "100Mil", foi a primeira a chegar e a última a sair. O padre da aerofagiadeu-lhe instruções técnicas lapidares: — "Transpire, transpire". Agorda teve um escrúpulo desculpável. Realmente, uma grã-fina vaido berço ao túmulo sem transpirar, jamais. O suor é coisa da classemédia para baixo. Mas por amor de Guevara fez o sacrifício etranspirou como uma moradora do Encantado.O homem do Paris-Match quis saber se a Ana Karenina doretrato tinha perdido peso nas marchas das esquerdas. Disse-lhe: —"Até aqui uns oitocentos gramas". Passara dos cem quilos para os99. E o colega perguntou: — "E o retrato do Che? Como temreagido?". Respondo: — "Maravilhosamente". Sim, o retrato passou atratá-la com outro charme. Houve mesmo um dia em que teve asensação de que Guevara piscou-lhe o olho. Radiante, a grã-finapromove o remédio entre as amigas: — "A sauna é uma ilusão. Só apasseata emagrece. E serve também para aerofagia".O colega indaga: — "Ela participou também da passeatainvisível?". Preciso explicar. No seu último artigo, diz o meu doceamigo Hélio Pellegrino que houve uma passeata contra a reunião dosexércitos americanos. Acontece, porém, que ninguém viu talpasseata, e repito: — nenhuma pessoa, viva ou morta, enxergou talpasseata. A coisa deve ter ocorrido dentro da mais rigorosainvisibilidade. Quinhentos agentes do Dops não perceberam nada. Nem a reportagem, nem os transeuntes, ninguém. Mas a nossagorducha não podia faltar, ainda que se tratasse de uma passeataespectral. Lá estava ela, a única. Pingava como um jogador de futeboldepois de noventa minutos de pelada.Expliquei que os oitocentos gramas custaram um martírioinenarrável. O que isso significa de disciplina interior, de vontadeatroz, de energia sobre-humana! Outra qualquer não teriaproblemas. Mas a nossa heroína é um dos maiores apetites terrenos.E o pior é que, tendo saído em "Os mais belos interiores do Brasil",que Manchete publica, tem uma fome de favelada. Sim, deu-lhe Deusuma fome nada seletiva. É capaz de comer a empada que matou oguarda. Mas o amor abre, sobre nossas cabeças, a bica dos milagres.Uma noite, o retrato de Guevara parecia mais frio do que o costume.Sentindo-se esnobada, ela jurou que, daí por diante, só tomaria chácom torradas. Ora, Guevara não acreditou, e vamos e venhamos: — osujeito só toma chá nos romances e nunca na vida real. Mas a nossagorda estava mesmo disposta a cumprir o juramento. Foi a umastrês festas e, na sua fidelidade ao Che, não tocou num míserosalgadinho.Na quarta festa, porém, foi demais. O seu apetite davaarrancos triunfais. Até que não se conteve. Passou uma bandeja.Apanhou um salgadinho e o enfiou no seio. Cinco minutos depois,outra bandeja. Outro salgadinho sumiu no decote. E assim,sucessivamente. Depois, ficou olhando a mesa. Deixou que todos seservissem. E, quando não havia mais ninguém, foi lá, apanhou umalagosta e a introduziu pelo decote. (Dirá alguém que, a comportartamanha lotação, seu busto é o próprio Seio de Abraão. E é.) Fezmais: — numa alucinação, foi à cozinha e arrebatou uma garrafinhade refrigerante. Ato contínuo, trancou-se no banheiro. E, lá dentro,foi comendo, comendo. Na hora de beber, quase engoliu a garrafinhacom chapinha e tudo, como um elefante de circo.
[11/10/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...