REVOLUCIONÁRIO DE FESTIVAL

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Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de GeraldoVandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor estavam maiseriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco antes, ao executaro seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comíciosdo Brigadeiro. A massa gritava: — "Já ganhou, já ganhou!". Tambémdomingo os fiéis de Vandré berraram: — "Já ganhou, já ganhou!".E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de"Caminhando" foi o maior espanto da terra. Apunhalado por umsegundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou,fisicamente.

 E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio quebem merecia estar inserido nas obras completas de WilliamShakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinalexterior e concreto de sua ira. 

Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permaneceudentro de Vandré. Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as carasnão mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhummistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pedia aos seus devotos:— "Aplaudam Tom e Chico, como se fosse eu!". 

Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mesmovaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como seaplaudisse. Contei o caso da universitária que, em São Paulo,arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguémsabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiandoou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. NoMaracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.

 Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça? Admitamos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna.E que "Sabiá" não merecia nem a lanterna. Admitamos tudo isso.Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser festejado e não chorado.Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, nãohá nada mais promocional do que a injustiça. O "injustiçado"assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, élambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenhamcarregado o Vandré na bandeja, e de maçã na boca, como um leitãoassado.

 Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. "Para nãodizer que não falei de flores" é uma bela canção. Não há dúvida. Belacanção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo: — "Sou contra 'AMarselhesa'! Não topei 'A Marselhesa!'". Custei a entender que elefalava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meuamigo deu-me a pista exata. Era uma deslavada "Marselhesa". 

Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Vandréestá fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para osocial, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chico, ou o Tom,pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandrésonha com a grande comunicação. E, então, quis fazer "AMarselhesa". Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, oque foi a execução de sua obra. Perdeu noites, na frementeelaboração. Mas quando acabou a sua "Marselhesa" — saiu-lhe aanti-"Marselhesa".

 Aí está, como eu dizia, o defeito. Lenin falou no "ópio do povo".O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo,repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de música que o sujeitodeve ouvir na rede, abanando-se com a Revista do Rádio. Quase umaberceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivessefazendo o povo dormir. Repito que nunca se viu uma "Marselhesa"tão pouco "Marselhesa", tão anti-"Marselhesa".

 Dirá alguém: — "E a letra?". De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso "injustiçado" fez o libreto para a ópera errada. Há, sim,entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompatibilidadestotais. É só prestar atenção. Uma coisa não tem nada a ver comoutra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há demais impróprio, de mais ineficaz para resolver as 'cóleras, sim, ascóleras que dormem nas entranhas populares.  

Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito,explode na vida brasileira uma nova figura: — o "revolucionário deFestival". Vocês entenderam? Trata-se do herói sem risco. Claro queoutros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na novae jovem "Revolução Francesa". Milhões de franceses entraram nomovimento. Pois bem. E não morreu ninguém. Não houve um mortoe, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-semuito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos oscarros, a "revolução" não teve nem os atropelados dos dias úteis.

 Eis o óbvio ululante: — o "revolucionário de Festival" não mata,nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância.Por exemplo: — o Roldão. Fez outra "Marselhesa" que se chama"América, América". Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbascínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante denós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá,de vez em quando, uma ratazana devora um recém-nascido.

 E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de "América,América". Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o"revolucionário de Festival" não toma conhecimento do Brasil. Aquimesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obraprima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava estecartaz: — "Muerte" etc. etc. Adiante, outro: "Independiencia omuerte". E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro sepõe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.  

Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: —"Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?". Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a distância quehá entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo colossal, que é oBrasil. Ninguém apontará um "revolucionário de Festival" quemencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta míseraterra. Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram nasua berceuse.[2/10/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora