OS DRÁCULAS

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Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Porexemplo: — a nossa. Ainda anteontem, falei da idéia inusitada de d.Hélder. O nosso querido arcebispo propõe uma missa cômica (seduvidarem, leiam a última edição dominical de O Jornal). Por trás desuas palavras, sentimos o tédio cruel de uma missa que se repete,com uma monotonia já irrespirável, há 2 mil anos. E ele sugere quese substitua o órgão, o violino, a harpa, o címbalo, pelo reco-reco, otamborim e a cuíca.Por aí se vê que ele, como o dr. Alceu, é um progressista. Nãosei se o leitor entendeu todo o alcance da sugestão. D. Hélder propõe,se bem o entendi, que se enfie o sobrenatural na gafieira ou poroutra: — que se faça da catedral uma gafieira gótica. Parece aoarcebispo de Olinda que se pode louvar a Deus, igualmente ou atécom vantagem, com a cuíca, o pandeiro, o reco-reco e o tamborim.A missa, como a conhecemos, nos últimos vinte séculos, étriste, é depressiva, é neurótica. E quem sabe se a Virgem, se Jesus,se os santos não hão de preferir, por fundo musical, o samba? Seriauma boa maneira de espanar o pó que 2 mil anos depositaram emcertas representações católicas.Mas falei acima nas épocas que parecem doentes mentais. Sóem nossos dias um arcebispo poderia irromper num jornal, natelevisão ou rádio e lançar a idéia da missa cômica. Estamospertinho da Semana Santa. É o caso de, na Sexta-Feira da Paixão,cada um levar seu reco-reco, sua cuíca, seu tamborim e seupandeiro. Nada de lúgubres e mórbidas procissões. E chorar por que,se tristezas não pagam dívidas? Mas, como eu ia dizendo: — se em qualquer outra época, de razoável sanidade, alguém sugerisse talcoisa, seria um escândalo inominável. Em sua indignação, os fiéisdariam arrancos triunfais de cachorro atropelado. Hoje, não.Hoje, achamos perfeitamente normal que se instale a vidaeterna numa gafieira. Daqui a pouco, um outro há de propor que,dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mãesbentas, caldo de cana, grapete e chicabon. Mas volto à minhaobservação anterior: — d. Hélder não espantou ninguém. Não houveescândalo, ninguém arrancou os cabelos etc. etc.Essa impotência para o espanto dá que pensar. Eis o que mepergunto: — e por que, meu Deus, por quê? Vejo católicosjustificando a guerrilha, achando a guerrilha uma atividadenobilíssima. E o dr. Alceu só não a recomenda para o Brasil, porque,diz ele, os nossos camponeses não são politizados. Eu me lembro deque, antes da esquerda católica, não tínhamos dráculas neste país.E já os temos. Amaldiçoados? Não. Abençoados. Sim,abençoados, absolvidos por respeitáveis homens de fé. Quando vi odr. Alceu falando, com indisfarçável simpatia, das guerrilhas, penseinuma outra e singular figura: — o Lawrence das Arábias. Vocês oconhecem da História e da Lenda. O próprio Lawrence conta uma desuas passagens mais patéticas. Vale a pena lembrar o episódio.Em dado momento, Lawrence teve que matar. Jamais tirara avida de ninguém. Em criança, era contra a matança até depassarinho. E, além disso, havia um mandamento, o único do qualse lembrava e, também, o único que cumpria: — o "Não matarás".Lawrence estaria disposto a roubar e, aqui entre nós, já roubara.Matar, jamais. Mas precisava tirar a vida de um semelhante. Era umhomem como ele e igual a ele.E, então, Lawrence preparou-se para matar. Nobilíssimosmotivos o impeliam para o assassinato. Na véspera do crime, nãodormiu; passou a noite em claro. Houve um momento em que ofascinou a idéia de morrer para não matar. Se estourasse os miolos, estaria dispensado do crime hediondo. Outro que matasse. O diabo éque o sentimento do dever o empurrava. E o dever passa por cimados mandamentos, por cima dos escrúpulos, por cima damisericórdia. Por dever, Lawrence saiu de casa para matar.Viu a vítima. Ia morrer e não sabia. Ele, Lawrence, seria, porum momento, Deus; tiraria uma vida, como se Deus fosse. ELawrence matou. O primeiro tiro já seria mortal. Mas a vítimapoderia não morrer imediatamente e também atirar. Então, Lawrencedeu o segundo tiro, igualmente mortal. Não precisava mais; elepoderia correr, pular o muro e sumir. Mas Lawrence ficou.O sujeito já estava morto, tecnicamente morto. Mas saiu oterceiro tiro. Eis a pergunta que o assassino fazia a si mesmo: — porque o terceiro tiro se, desde o primeiro, a vítima já era uminequívoco, indubitável cadáver? Com grande assombro para simesmo, continuou atirando. Quarto, quinto, sexto tiro. E só parouquando esgotou a carga. Era a hora de fugir. Mas ficou ainda. Viroua arma e meteu a coronha na cara do cadáver. E o fato de não termais balas, para continuar atirando, deu-lhe um sentimento atroz defrustração. Só então fugiu.Mais adiante, Lawrence pára, assustadíssimo. O que oapavorava, em si, era a ausência de qualquer horror. Matara, pelaprimeira vez matara, e não estava horrorizado. Matara gostando dematar. Ao varar de balas a vítima, sentira um prazer jamaissuspeitado. Era uma volúpia que não conhecia. Olhou em torno.Passava, lá adiante, uma senhora, uma velha; e, mais além, umacriança. Teve a súbita e inefável tentação de matá-las também.Matar, sempre matar, matar na véspera, no dia seguinte,eternamente matar.Não quero ser enfático. Mas me parece estar havendo, noBrasil, uma degringolada de valores. Vimos d. Hélder propor a missacômica; e ninguém se espantou. Vimos o dr. Alceu declarar que, porcausa de um passarinho, pode-se matar um homem. Uma coisa está ligada à outra e ambas se explicam. Se d. Hélder pode propor agafieira gótica, e se o dr. Alceu absolve um monstruosíssimoassassinato (se bem que hipotético), tudo é permitido e vale tudo.O brasileiro é uma espécie de Lawrence na véspera do crime.Vozes piedosas, batinas consagradas e a ferocíssima esquerdacatólica doutrinam as massas sobre a "violência justificada". Aí estauma janela aberta para o infinito. E se o brasileiro matar, um dia? Ese, como Lawrence, gostar de matar? E se começar a beber o sanguecomo groselha?[5/4/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora