Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C.Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é oque mais viaja. De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — "Meubem, cadê o Machado?". A telefonista, mascando um imaginário chiclete,responde: — "Está em Tóquio". Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim.E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.
Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim paramim: — "Por que viaja tanto o Machado?". E, de fato, é o único brasileiro quegosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que,para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino. Estivemos juntos,ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estarádesembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul
Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras,idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos osjornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas portelefonemas. E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: —ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em quejornal. Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — "Eu não soujornalista". Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais,capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumentoou raciocínio. E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria poucopara a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capade Manchete que o Machado quis saber: — "Mas o que é, afinal?". Imagino que,do outro lado da linha, a grãfina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; edisse: — "Estou lendo Marcuse".
Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: —"Como? Como?". A outra suspira: — "Estou lendo Marcuse". E queria que oMachado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d.Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, asamigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horase os dias lendo e relendo Marcuse.
Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — "Comopode? Como pode?". Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, osdados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonhoescândalo: — "Mas é ela? Ela?". Sim, era "ela". E, já num interesse profundo,perguntei mais: — "E vais dar a notícia?". Meu amigo admitiu que sim. Estavadisposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão "prafrente".
E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e,se possível, até uma descrição física da pessoa.Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não.Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grãfinas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Tay lor. Como sesabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou. E a leitora deMarcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de ElizabethTaylor.
Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações "físicas" sobre anossa heroína. Ah, já me lembro. Tempos atrás, fui ao Estádio Mário Filho verum FlaFlu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; agrã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entendetanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar,nervosamente: — "Quem é a bola? Quem é a bola?".
Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelomesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numapromiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora deMarcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que aolhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: —ela tem narinas de cadáver!
a tem narinas de cadáver!Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveisvirtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acimade qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver. E, ali, noelevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitorade Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou doprimeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade dodesquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anterioresforam, ouso presumir, as narinas de cadáver.
Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claroimpedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e,dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais. No fim da leitura, eis aminha conclusão: — "O Machado trabalhou direito". E, de fato, em todos osjornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — "Asra. Fulana de Tal está lendo Marcuse".
Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginamo que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e láestá: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lêMarcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estãolendo Marcuse. A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.
A grã-fina que "lê Marcuse", e o confessa por toda a parte, está dando umatestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha éesquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mãode sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta eeterna impossibilidade.
No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listastelefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão àprópria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceupara não sujar o vestido.
Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína.Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos. Certa vez, fui aum sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seudecote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano,moreno como um galã do neorealismo italiano. E havia também um dominicano,vestido de branco, que passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculadopavão de arminho. Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuseteve uma dúvida: — "Esse Molière é brasileiro?". Um pau-d'água grã-finorespondeu na hora: — "Cearense".
[20/7/1968]
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A Cabra Vadia
CasualeNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...