Era um chofer de praça. Não sei se de origem italiana ou se elepróprio era italiano. Um dia foi preso. Por que, nem Deus sabe. Nãofizera absolutamente nada. Era uma das raras inocências do nossotempo. Sua vida tinha este movimento doce e casto: — da casa parao trabalho, do trabalho para a casa. Foi preso, repito, porque umabatida está acima da Justiça e da Iniqüidade.
E atiraram o chofer no fundo de um xadrez. Mas antes levouuns cachações. No seu espanto, começou a chorar. Sim, ele, chefe defamília, marido de uma santa senhora, pai de sete filhos, ele chorava.Mas uivaram: — "Engole o choro! Engole o choro!". O chofer de praçacerrou os dentes, trancou os lábios e acabou engolindo o choro. Umúltimo bofetão e entrou no xadrez.
Lá estava uma meia dúzia de marginais. Ao vê-lo, um deles dáo berro triunfal: — "Carne fresca!". E o recém-chegado via aquelascaras, e tinha o olho enorme de pavor. O riso estava crescendo.Gritou: — "Socorro! Socorro!". Do lado de fora, o guarda nem olhou.Uma hora depois, a Assistência encostava no distrito. Lá saiu oportuguês, isto é, o italiano, de maca. A caminho do pronto-socorro,repetia: — "Não quero ver a minha patroa! Nem meus filhos!". Pausa,e vinha o resto: — "Não quero ver ninguém!". Sua idéia fixa era "nãover ninguém", nunca mais ver ninguém.
Ficou no corredor, esperando o primeiro médico vago. Equando apareceu um avental de mangas curtas, gemeu o apelo: —"Doutor, não me salve! Não me salve!". Claro que o médico o salvou.Passou no hospital oito dias (não sei, exatamente. Vá lá: — oito dias).Já na manhã seguinte, saiu a manchete, não sei se na Luta, no Dia, ou em ambos: — "Currado no xadrez". Parece que o jornal falava emsete marginais. Ah, esquecia-me de dizer que não recebeu a mulher,que aparecera com dois garotos. Mandou o recado: — "Vai embora!Vai embora!".
O chofer de praça queria sair do hospital e desaparecer. Teve aidéia de ir para não sei onde e até de mudar de nome. Chamava-senão sei se Lucas (agora me lembro: — o pai é que era italiano). Masum médico, recém-formado, deu-lhe conselhos. Disse que nem ele,nem a mulher, nem os filhos tinham culpa de nada. Portanto, deviavoltar, sim, para casa. Ele dizia, de olhos baixos (não tinha coragemde olhar para ninguém): — "Minha mulher vai mudar, meus filhosvão mudar". Achava que até o caçula havia de olhá-lo de outramaneira. E arquejava, sem encarar o médico: — "Minha mulher nãovai esquecer. Eu sei que ela não vai esquecer!". Mas o doutor tantoinsistiu que, por fim, disse: — "Vou pra casa, sim". E acrescentou, deolhos baixos, sempre de olhos baixos: — "O senhor me salvou".
No fim dos oito dias, saiu. Na porta do hospital, teve umaúltima dúvida. Por fim, decidiu-se: — "Vou". E foi. Entra em casa. Aovê-lo, a mulher começa a chorar. Os filhos têm medo. Ele estádizendo baixo e vai num crescendo: — "Não olhem pra mim. Nãoolhem pra mim". O menor veio atracar-se ao pai, mas levou umsafanão. E o chofer corre para o quarto e tranca-se lá. Vai abrir agavetinha e apanhar a arma. Mete uma bala na cabeça.
Eis o que queria dizer: — também a Tchecoslováquia foicurrada. De repente, nas barbas da platéia mundial, não sei quantosexércitos a estupraram. Foi invadida por todos os lados. Humilhada,ofendida, pisada. Bem. Cabe então a pergunta: — e que vão fazer osestudantes? E os intelectuais? E os grã-finos? E a "classe teatral"? E,sem querer, penso na Hungria. Quando os russos a massacraram,existia a UNE. Hoje, todo mundo chora a sua clandestinidade. Tem-sea impressão de que o Brasil não anda porque fecharam a UNE.
Mas insisto: — que fez a famosa e tão pranteada UNE quando a Hungria foi invadida? Não fez nada, exatamente nada, e repito: —não exalou um pio. Um mísero pio, nada. Boiando nas verbas fáceiscomo uma vitória-régia, ela ignorou o assassinato de um povo. Oshúngaros foram fisicamente esmagados. Os tanques passaram porcima de crianças, mulheres, velhos. E nenhuma manifestação daUNE. Hoje, temos até uma musiquinha de protesto. Mas só contra oamericano. O compositor põe umas rimas no ódio aos EstadosUnidos e se dá por satisfeito.
Aí está a nossa má-fé cínica e inédita: — o nosso ódio não tomaconhecimento da Rússia. Amantes espirituais de Guevara (e deambos os sexos) são numerosíssimos. Houve um tempo em que eraStalin. E, então, eu via, aqui, por toda a parte, "amantes espirituais"de Stalin. Eram jornalistas, intelectuais, poetas, romancistas.Lembro-me de um comunista que me dizia, na redação de O Globo:— "Hitler é mais revolucionário do que a Inglaterra". Isso antes dainvasão da Rússia. Outros punham nas paredes retratos de Stalin.Era uma pederastia idealizada, utópica e fotográfica.
Nos últimos tempos, temos visto as passeatas,. Perguntem aum dos que marcham: — "Você é o quê?". Ele dirá: — "Socialista".Não de modelo sueco. Ninguém está interessado na Suécia e no seusocialismo não stalinista, não homicida, não sanguinário. O sujeitoda passeata é socialista chinês, ou russo, ou cubano. Mas o russo,ou chinês, é a invasão da Hungria, da Tchecoslováquia, da Polônia,na guerra. E, por isso, vimos nossos jovens marchando com cartazesde "Muerte". Desde quando o brasileiro odeia em espanhol, mata emespanhol? (E a China é o socialismo na sua forma stalinista maisbestial e assassina.) Sempre que há as passeatas, picham as nossasparedes com vivas a Cuba, ao Vietcong, a Guevara. Ao Brasil, não.Mas que é Cuba? É uma Paquetá. E não invade, não fazimperialismo porque é frágil, impotente, indefesa como Paquetá.
E os nossos intelectuais de "passeata", de "manifestos"? Quefarão eles? Gostaria de vê-los passeando em favor da Tchecoslováquia e contra a Rússia. Por toda a Cortina de Ferro, ocrime contra a inteligência é uma descarada rotina. E deve haveruma relação entre os intelectuais e a inteligência. O diabo é que elessó usam o gesto, a ênfase, o palavrão, contra os Estados Unidos. Sãoos que mais odeiam os americanos. Mesmo os mais desinteressadosdo ato político, do pensamento político, do crime político, mesmoesses, dizia eu, fingem-se de antiamericanos. Nunca me esqueço deÉrico Veríssimo. Tem tão escassa informação política que é capaz depensar que somos governados ainda por d. Pedro II. E o nosso Éricoachou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos EstadosUnidos. No Brasil, o intelectual tem de xingar a grande nação parasobreviver.
Mas os estudantes que têm retratos de Mao Tsé-tung, Lenin,Guevara, não vão fazer nada. As sacadas, que são aéreas barricadas,também nada. E os intelectuais? Esses são socialistas, do tipo quemata, fere, degrada, curra e desumaniza. Um povo foi violentadocomo o chofer de praça. Portanto, por obrigação de coerência, e emnome do socialismo, os intelectuais devem aplaudir o estupro.
[23/8/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...