A MESSALINA GAGA

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Tenho um amigo curiosíssimo. Dá-se comigo há mais de trintaanos. Mas não há, digamos assim, continuidade em nossosencontros. De vez em quando, desaparece; e, de vez em quando, volta(é cíclico como a minha úlcera). Quando some, sua ausência tem adensidade da morte. E, quando reaparece, está sempre comigo,grudado a mim como um gêmeo. 

Mas eu disse "amigo curiosíssimo". Pelo seguinte: — nunca seise ele se chama Meireles ou Marcondes. Pode ser Marcondes e podeser Meireles. Tal singularidade empresta à nossa relação um tommeio alucinatório. Eis o que eu queria dizer: — não o via há mais deseis meses. E, ontem, de repente, dou com o Meireles na esquina, emcima do meio-fio, esperando que o sinal abrisse para os pedestres.Quando nos vimos, foi uma festa recíproca e escandalosa.

 O Meireles caiu nos meus braços e eu nos dele. Dizia ele, deolho rútilo: — "Há quanto tempo!". Em seguida, gabou-me aaparência. Disse e repetiu: — "Você está ótimo, ótimo". E eu: —"Você também". Afirmei que a sua aparência era um poema. Depoisdos mútuos rapapés, o Marcondes (ou será Meireles?) limpa umpigarro e começa: — "Preciso de um favor teu". Digo-lhe: — "Dois".Põe a mão no meu ombro: — "É o seguinte: — faz outra entrevistaimaginária com o d. Hélder, faz".  

Era esse o favor. No meu espanto, exclamo: — "Outra vez?".Tentei explicar-lhe que um colunista diário vive da variedade deassuntos e de figuras. O leitor não gosta de fixações. E repeti: — "Osegredo é a variedade". O Marcondes não se conforma. Retruca comum argumento engenhoso: — "D. Hélder é a própria variedade, é a antimonotonia". Terminou com um novo apelo: — "Te peço,encarecidamente, uma nova entrevista imaginária com o d. Hélder".Digo, por fim: — "Está bem. Farei". O Marcondes se despediu numarroubo: — "És uma mãe!".

 Isso foi ontem. Hoje, estou na máquina, escrevendo mais umaimaginária. Como se sabe, nada mais falso do que a entrevistaverdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o quesabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à últimalinha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade. 

Tais entrevistas imaginárias só ocorrem à meia-noite em ponto.Eis a paisagem obrigatória: — um terreno baldio que tenha, no alto,uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes.Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de umacabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamentequando o sino da matriz dava as doze badaladas. Alhures, umacoruja pia. D. Hélder pergunta: — "E o pessoal? Não vem ninguém?". 

Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é opudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e ninguémas ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: — "Em que jornaltrabalha a cabra?". Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos,menos o de ser jornalista. Esclareço ainda: — "A única função dacabra é paisagística". A frustração do sacerdote foi total. Fechou aquestão: — "Só falo para jornal, rádio, televisão". Pergunto: — "É suaúltima palavra?". Era. 

E, já que não havia outro, remédio, tratei de convocar umaimprensa também imaginária para o local. Instantaneamente,apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, oWashington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos,correspondentes estrangeiros, a BBC de Londres etc. etc. Essa platéiaespectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martinssurgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Claudio Mello e Souzadaria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: — "E a Life não mandou ninguém?". Tive queprovidenciar um enviado imaginário da Life.

 Todos presentes, comecei: — "D. Hélder, a diretora de umcolégio religioso de São Paulo disse o seguinte: — que ser prostituta éuma profissão como outra qualquer. O senhor concorda?". D. Héldernão respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como serezasse. Os faunos e as ninfas, que costumam infestar os terrenosbaldios, vieram espiar. Suspense aterrador. E, súbito, o arcebispopula: — "Não! Não!". 

Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. Todossentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos,vai falando: — "Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissãocomo outra qualquer. Absolutamente. É uma profissão que exigeprendas raras. Raras". 

Instalou-se, ali, no mato, o caos profundo. A imprensaimaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Ostaquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mais didático, d.Hélder está falando: — "Qualquer uma pode ser datilógrafa, não éexato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativosespeciais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bruxa de discoinfantil não pode fazer a prostituição. Tanto a gaga como o buchomorreriam de fome. Portanto, é injusto falar em 'uma profissão comooutra qualquer'. Ou estou enganado?". O orador é aplaudido comoum tenor no dó de peito. 

O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: — "Éverdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?". D. Héldernão ouviu direito. O outro repete: — "É verdade que o senhor brigoucom o passado da Igreja?". A resposta foi de uma rara felicidade: —"Meu amigo, quem tem passado é a adúltera recuperada". Nestemomento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com umlivro: — "O senhor quer escrever isso no meu álbum?". D. Hélderarranca da batina uma caneta e põe lá: — "Quem tem passado é a adúltera recuperada". Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta:— "Gostou?". E a moça: — "Lindinho!". 

Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis apergunta: — "O que é que o senhor acha do amor?". D. Hélder fez umrisonho escândalo. Diz: — "Oh, oh!". E responde com outra pergunta:— "Que idade você tem?". Resposta: — "Dezenove". D. Hélder ralhou,alegremente: — "E como é que você, aos dezenove anos, fala emamor? O que é amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é adoença do sexo". Estaca ao som da própria frase. Diz: — "Acho quefui feliz". E repete: — "O amor é a doença do sexo". Estimulado pelafrase, foi adiante: — "O amor tem que ser exterminado. Nunca amorbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, deuma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas edos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece umWerther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-latamatou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia.Precisamos matar o amor!".

 Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária. OJustino Martins tornou-se diáfano, o Claudio Mello e Souza,incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos,tudo se volatilizou. E, por muito tempo, o terreno baldio ficouressoante da sábia frase: — "O amor é a doença do sexo". 

[15/6/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora