Um dos momentos mais patéticos da minha infância foiquando ouvi alguém chamar alguém de "canalha". Note-se: — era aprimeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Válá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foimedo e não espanto. Para mim, uma palavra estava nascendo, era onascimento de uma palavra.
Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mesmo: —"Canalha, canalha". O som ainda me fascina como na infância. Epergunto a mim mesmo se "o canalha" é uma dimensão obrigatóriade cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo decanalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que hásantos canalhas.
Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos perdura emmim até hoje. Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito dechamar um semelhante de canalha. Poderão objetar que pulha é uminsulto equivalente. Ilusão. Vi um sujeito ser chamado de "pulha".Retrucou ao outro: — "Pulha é você!". E o incidente morreu aí. Dezminutos depois, os dois pulhas estavam, na esquina, bebendocerveja.
O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não háincompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode sercanalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna.Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destinode solidão é o seu, eternamente.
Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio séculodepois, me pediram um programa de televisão. Recomendaram: — "Coisa original". Tratei de recorrer à minha originalidade. E, então,lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava umsujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minhaúlcera teve contrações de víbora agonizante). Imediatamente,ocorreu-me a idéia. Liguei para o patrocinador. Disse-lhe: — "Játenho o título".
O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas.Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valores. NoBrasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda sãotecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem égrande homem, se o gênio é um débil mental, se a senhora honesta éuma messalina.
messalina.Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsoscanalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E osfalsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas primeiraspáginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos.Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Campos.
A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, umfalso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — eratão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibsenianoacabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, eledescobriu que o grande homem é o que está "mais só".
Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário doque o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total.Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriammatá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d'água berrando: — "Douum tiro nesse Roberto Campos!". Ao mesmo tempo que dizia isso,pendia-lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida.
E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Masacabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo antigo,pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script doprograma e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti aminha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da máquina eo rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — "Olha. Nada feito.Esse título me dá vômito".
Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar ninguém,jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito quenasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, amais cruel e inapelável das palavras. E, no entanto, vejam vocês,nem pensei nas surpresas do mundo.
Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr.Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor. Diga-se depassagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração epena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muitobem: — e que diz em tal artigo o notável pensador católico?
Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, dequatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — "Não sei,realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba seesqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de maisesse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de sercometido em Moscou". Bem. Em primeiro lugar, ninguém "esqueceu"nada. Os totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Simplesmente,os quatrocentos intelectuais estão inteiramente a favor da políciasoviética e apóiam, de alto a baixo, "mais esse crime".
Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr.Alceu, para a imprensa, dizer que "não sabe". Não sabe que, por trásde toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário,inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pensamento, decriação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu "nãosabe", nem desconfia do óbvio ululante, como ousa assinar umacoluna de jornal? Insisto: — se "não sabe", então que devolva odinheiro que o dr. Britto lhe paga pela colaboração tão cega e tão surda.
Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebível: — odr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado,em Moscou, por vadiagem, e condenado. Quando lhe perguntarampela profissão, respondeu: — "Sou poeta". E o juiz, fulminante: —"Isso não é profissão!". A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de serpoeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.
Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem umaboa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — "E, se sabe,por que vem dizer, de olhos baixos: — 'Eu não sei'?". Mas, se sabe,não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enganar, a mim, ou ao dr.Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus tambémsabe e sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é um dr.Britto? Mas eu direi ao eminente sábio, sob minha palavra de honra:— Deus não é o dr. Britto. Amém.
O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Alceu vêa torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sente o cheiro.Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nadadiferem dos oitocentos que, na Rússia, assassinaram Pasternak. Sãocanalhas uns e outros.
[5/2/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...