Como qualquer autor, vivo ou morto, tenho três ou quatropersonagens obrigatórios. E um deles é o havaiano de filme. Hoje,não há mais louro no Brasil. Todo mundo é moreno. E quando faltauma praia, há sempre um sol à mão. Vem o sol e lambe e bronzeia elustra qualquer um. Somos 80 milhões de havaianos e de havaianas.Dirão que há garotas de cabelo dourados. Não importa. No Brasilatual, mesmo as louras são morenas.
Que abismo entre as gerações românticas e os novos tempos!Na época do Dumas filho, o certo, o correto e, mesmo, o obrigatórioera a palidez diáfana e intensa. Nos velhos folhetins, ao menorpretexto, os personagens cobriam-se de uma "palidez mortal". Aquimesmo, o nosso Bilac ouvia estrelas "pálido de espanto". (Hoje, omesmo Bilac ouviria as mesmas estrelas "moreno de espanto".) Enem a morte mudava a cor de ninguém. Só o cadáver preto era azul.Ao passo que o branco, vivo ou morto, tinha a mesmíssima lividez.
O que é mesmo que eu estava dizendo? Já sei. Dizia eu quesomos todos havaianos. Todos, menos um. E, de fato, há umbrasileiro que se constitui em uma exceção escandalosa. O único nãomoreno. Eis o seu nome: — Nelsinho Motta. Daqui a oitenta anos,sua alma subirá aos céus, num carro azul de glórias, como Elias ecomo o pai de Augusto dos Anjos.
E, lá, os anjos e os santos perguntarão ao Nelsinho: — "Vocênunca foi à praia? E nunca tomou banho de mar?". Alçando a fronte,dirá o colega e patrício: — "Nunca tomei banho de sol, nunca tomeibanho de mar". E assim é e assim será, eternamente. Nelsinho Mottaé a única palidez que se conhece na vida real. Eu próprio já o chamei, certa vez, de Alfredo, da Traviata. Mudei de opinião. É muitomais Werther do que Alfredo. E tão Werther que, ao vê-lo, tenhovontade de perguntar-lhe: — "Quando é o suicídio?".
Mas disse eu que o colega era o caso único de palidez que seconhece no Brasil de nossos dias. E, novamente, tenho que fazeruma exceção. Conheci, três ou quatro noites atrás, uma outrapalidez, e não menos diáfana. Imaginem vocês que fui a um sarau degrã-finos na Gávea. Sim, Gávea.
Entre parênteses, direi que qualquer sarau desse tipo lembramuito um pesadelo humorístico. Se não me entendem, explico.Humorístico porque uma reunião grã-fina se assemelha a todas asreuniões grã-finas passadas, presentes e futuras. Entro lá e penso:— "Vai acontecer tudo outra vez". E, de fato, são os mesmos decotes,as mesmas sandálias, e os mesmos cabelos, e perfumes, e frases, ejóias etc. etc. Fecho o parêntese.
Assim que me viu, a dona da casa veio para mim, radiante.Estendeu não uma, mas as duas mãos. Perguntou: — "Como vai essereacionário?". Numa época em que ninguém se ruboriza, eu fiquei, eo confesso, vermelhíssimo. Digo: — "Vai-se vivendo". E já a dona dacasa (uma havaiana) me puxava: — "Vem cá, vem cá. Alguém quer teconhecer". Demos alguns passos e encontramos a pessoa. Era umaoutra grã-fina e, como a anfitriã, uma falsa bonita. Diga-se depassagem que todas as presentes eram falsamente lindas.
A dona da casa me apresenta: — "Aqui, o maior reacionário doBrasil". Digo: — "Não mereço tanto". E, então, ela se volta para aamiga: — "Aqui, Fulana". Pausa teatral e completa: — "A amanteespiritual de Guevara". Sou dos que se espantam de vez em quando.Achei aquilo meio forte (bobagem minha). Mas a amiga fixa em mim oseu olhar límpido e triste. Queria dizer simplesmente que era"amante espiritual" de Guevara: — "Com muita honra". Deliciada, aanfitriã insistia: — "Não é brincadeira. Sério, sério". E disse mais: —"Com o consentimento do marido. Quer ver? Um momentinho".
Afastou-se um minuto. A outra não tirava os olhos de mim.Houve um momento em que, para dar passagem ao garçom, chegoutanto o rosto que senti o frêmito de suas narinas. Voltava a dona dacasa com o marido da amiga. (O marido era só testa. Não tinha maisnada. Só testa.) A anfitriã fala: — "Diz pra ele. Sua mulher é o quê?".A testa respondeu, em tom monotonamente informativo: — "Aamante espiritual do Guevara". Silêncio. Eu não sei se devo rir, sorrirou ficar sério. Mas ninguém, ali, achava graça. Era um fato ou, paraser mais explícito, um adultério como outro qualquer.
E, depois, saiu a dona da casa com o marido alheio. Foi aí queela me disse: — "O senhor, que é jornalista, sabe de uma sessãoque...". Interrompe-se; e continua: — "Sou católica, mas... Sabe deuma sessão espírita, onde eu possa comunicar-me com Guevara?".Fiz um suspense. Começo: — "Bem. De momento, não me lembro denenhuma. Só pensando". E cada vez me convencia mais de que erauma falsa bonita. Finalmente, sem uma palavra, ela me deixou ali, eia, ereta, a fronte alta, os olhos sem luz, misteriosa como umasonâmbula.
Todavia, a noite não esgotara ainda o seu repertório desingularidades. Em seguida, vi a anfitriã arremessar-se (e quase ogarçom a atropela). Dizia: — "Padre Fulano! Padre Fulano!". Espiei afigura que acabava de chegar. Falei no Nelsinho Motta. E o padre eraoutro pálido e, quero mesmo crer, mais pálido do que o Nelsinho.Nunca pisara numa praia. Talvez a palidez fosse a sua únicaconcessão ao misticismo. Primeiro, a dona da casa; e, em seguida,outras o envolveram, quase o raptaram. Esquecia-me de dizer: — nãousava batina. Colarinho, gravata, terno, como qualquer um. "Padremoderno", notou alguém.
Resistia às havaianas que o cercavam: — "Estou de passagem.Deixei o automóvel na porta. Vim aqui". Uma voz feminina pedia peloamor de Deus: — "Fica só quinze minutos". Ele acabou perdendo apaciência: — "Um momento, um momento!''. Como era confessor de várias, inclusive da "amante espiritual" de Guevara, tinha autoridadee se dispôs a exercê-la. Berrou: — "Silêncio!". E, assim, emudeceutodos os cochichos. Sentiu que havia acústica para sua mensagem.Disse forte, disse alto: —' "Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anosda Igreja!". Suspense. Repetiu: — "Peço desculpas pelos 2 mil anosda Igreja!". Pessoas de outras salas vinham espiar, espavoridas. Maso padre já se despedia, com um aceno geral: — "Até logo, até logo. Otáxi está esperando. Tabela 2!". Como era tabela 2, deixaram-nopartir.
Só depois eu soube que, antes dele, um outro sacerdote fora aum programa de estudantes na televisão. Começara exatamenteassim: — "Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja". Masnão são os únicos. Outros e outros estão repetindo, com patética erutilante humildade: — "Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja".Pergunto se é uma palavra de ordem. E a sensação dos fiéis é de quese trata de um vil passado, de vinte séculos de lepra espiritual.
[2/7/1968]
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...