SAÚDE DENTÁRIA

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Cada um de nós é um subdesenvolvido furioso contra osubdesenvolvimento. Outro dia, fui testemunha auditiva e ocular deum episódio curiosíssimo. Era na rua Santa Luzia, esquina deMéxico. E um idiota trepa num caixote de querosene Jacaré. Começaa fazer um comício. E que dizia ele? Falava do desenvolvimento.Imediatamente, juntou-se, ali, uma multidão de Fla-Flu. 

Berrava: — "Porque o desenvolvimento, e osubdesenvolvimento, e outra vez o desenvolvimento" etc. etc. Essamúsica verbal fascinava a platéia. Já um amigo meu, temperamentootimista, tem uma visão menos negra da nossa miséria. Esse meuamigo viu, na TV, o Festival da Canção. Não prestou atenção, nem àmúsica, nem à letra, nem ao canto. Estava obcecado pela saúdedentária dos intérpretes. Gemia: — "Que dentes! Que dentes!". Econcluía que o nosso subdesenvolvimento é uma fraude. Se obrasileiro tem bons dentes — não é subdesenvolvido.

 Mas eu falava da nossa fúria contra o subdesenvolvimento.Vejam o nosso Nordeste. A quem deve d. Hélder o seu pão de cadadia? Deve-o à fome do Nordeste. E há outros, e outros, e outros que,como o bom arcebispo, vivem e prosperam graças, ainda e sempre, àfome do Nordeste. Há mais. D. Hélder deve cada frase e cada gesto desua retórica à bendita miséria nordestina. (Quando lá se instala umanova fábrica ele tem urticária de ódio impotente.)

 Portanto, os interesses criados exigem que o Nordestepermaneça como está, rigorosamente como está. É preciso que nãoseja alterada uma vírgula da mortalidade infantil. O que eu queriadizer é que, em tantos casos, a raiva contra o subdesenvolvimento é profissional. Uns morrem de fome; outros vivem dela, com generosaabundância.

 Todavia, existe uma paixão pior que o ódio do subdesenvolvidocontra o subdesenvolvimento. Sim, há um outro tipo deressentimento ainda mais amargo e ainda mais feroz. Refiro-me aodesenvolvido indignado contra o desenvolvimento. Aí está o exemplodos Estados Unidos. 

 

Os Estados Unidos, além de outros méritos, puseram o homemna Lua. Devíamos dizer: — "Que país formidável!". Outro dia, umnosso padre de passeata esbravejava no sermão: — "Paz édesenvolvimento". O sacerdote fez uma pausa, parou o gesto,arquejante da própria veemência. Repetiu, abrindo os braços: — "Pazé desenvolvimento!". Os ouvintes tremiam em cima dos sapatos. Epoucos perceberam que aquilo era muito mais patético do queverdadeiro. O correto seria dizer, inversamente, que sãoincompatíveis a paz e o desenvolvimento .

 Falei dos Estados Unidos. Se o desenvolvimento fosse a paz, oamericano seria um ser paradisíaco. Tem tudo. O seu país é o maisrico do mundo. O operário vive a vida que pediu a Deus. Tem muitomais direitos do que deveres. Na guerra, os metalúrgicos tiveram osinistro descaro de fazer uma greve. Estavam comprometendo oesforço de guerra do país; e eles, que já ganhavam bastante, queriammais uns tostões. Pergunto: — por que, nos Estados Unidos, é maisfácil arranjar uma girafa do que uma cozinheira? Porque, lá, acozinheira é uma grã-fina. Bóia numa banheira de leite de cabracomo uma Paulina Bonaparte. E o próprio desempregado tem umapensão suntuária.

 Portanto, a ser verdade o que diz o padre de passeata, oamericano devia estar dando graças a Deus de ser americano. Pelocontrário. Ainda me lembro daquele almoço de Porto Alegre. Estavamna mesa brasileiros e americanos. Um dos presentes era o nossoSobral Pinto. E o grande Sobral começou a meter o pau nos Estados Unidos, a fazer-lhes restrições crudelíssimas. Aconteceu, então, estacoisa prodigiosa: — os americanos aderiram e malharam, também, aformidável nação. Daí a pouco, estava o Sobral a defender os EstadosUnidos dos americanos.

 Eis o que eu queria dizer: — o desenvolvido é um ressentidocontra o desenvolvimento. Ninguém agride tanto os Estados Unidoscomo os próprios Estados Unidos. Há pouco tempo, passou noscinemas de lá, em circuito normal, e, em seguida, nas TVS, um filmesobre As atrocidades americanas no Vietnã. Ora, numa guerra, todoscometem atrocidades contra todos. Seria facílimo filmar asiniqüidades de parte a parte. Mas os Estados Unidos trataram dereunir uma antologia de cenas que os comprometessem ao infinito. 

E o sujeito que vê tal filme imagina que só os americanosmatam, só os americanos ferem, só o americano dá tiro. Por sua vez,os jornais e as agências telegráficas tratam de vender, para o mundo,uma imagem aviltada de sua pátria. Qualquer radiofoto que possaofender o país é distribuída para o mundo inteiro. As revistas norteamericanas encomendam, no estrangeiro, artigos contra os EstadosUnidos.

 Certa vez, um dos nossos intelectuais de esquerda escreveu umartigo absolutamente irracional. Lá dizia ele, mais ou menos, oseguinte: — só o americano gosta de beber, de ganhar, de matar, deroubar etc. etc. Muito bem. E o intelectual patrício mandou traduziro artigo e o remeteu a uma grande revista dos Estados Unidos. Pelavolta do correio, recebeu o cheque suntuário. E, pouco depois, via,na tal revista, seu trabalho aberto, escandalosamente, em páginadupla.

 Todavia, o maior enfermo do desenvolvimento americano é oestudante. O Estado lhe dá tudo para ser um gênio. É tratado a piresde leite como uma úlcera. E, no entanto, a juventude universitária éde um antiamericanismo total. Recebi, ontem, de Nova York, a cartade um amigo meu. Diz ele que, na Califórnia, os dois líderes estudantis mais agressivos são um peruano e um venezuelano. Osdesenvolvidos deixam-se manipular pelos latino-americanos.Pergunta-se: — e por que esse peruano e esse venezuelano assumemtal poder de liderança? Porque odeiam os Estados Unidos. Por isso,tantos universitários os seguem, fascinados.

 Mais dramático é o nosso caso. O terrorismo instalou-se noBrasil. E os que o praticam são brasileiros que se dizem chineses.Por aí se vê que nos falta também, e por motivos diferentes, ummínimo de auto-estima. Cabe então a pergunta: — por que a China,ou Cuba, ou Rússia, e não o Brasil? Por que esses homicidas,incendiários e assaltantes precisam pôr um sotaque no próprio ódio?Imaginem que nem os chineses entendem os chineses. O que nóschamamos China são várias Chinas. Eis um povo que não tem umidioma único e nem, ao menos, o mesmo Deus. Por enquanto, o quedá aos chineses uma certa unidade é o terror. Sabemos que o medojunta e até quando? Há de chegar um dia em que, naquele território,aparecerão vários mao tsé-tungs, várias guardas vermelhas. Erecomeçará o caos da China. Velha China, de Pearl Buck. Vi tantasvezes jovens brasileiros gritando: — "Vietnã, Vietnã, Vietnã!". Issonas barbas da rua do Ouvidor, da rua Sete, do largo da Carioca. E seconfessavam, aos berros, chineses, ou vietcongs, ou cubanos. Certavez, condenando meus artigos, telefonou-me uma aluna da PUC.Disse o diabo e concluía: — "Sou da linha chinesa". Ninguém ébrasileiro, nem quer fazer uma revolução brasileira. Simplesmente, oBrasil não existe. E vi, em outra ocasião, uma cena que não mecanso de relembrar. Numa passeata, um jovem estudante carregavaum cartaz: — "Muerte" a não sei o quê. O jovem queria matar emespanhol. 

[9/10/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora