O CACHORRO ATROPELADO

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Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem seiquando. Escapa-me também o nome do autor. Se não me engano,era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a influênciada distância nas leis da emoção. Vejamos o que dizia o cronista.Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato deser na nossa porta, teria mais apelo emocional do que Hiroshima. 

Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceuoutro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas háentre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distânciainfinita, espectral. Sem contar, além da distância geográfica, adistância auditiva da língua. Ao passo que o cachorro é atropeladonas nossas barbas traumatizadas. E mais: — nós o conhecíamos devista, de cumprimento. Na época própria, víamos o brioso vira-lataatropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lamberaas nossas botas. 

E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou.Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atropelado.Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato umadensidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos umarelação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiroshima, ou oVietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância. 

Não sei se estou dizendo o óbvio. Não importa. Toda a históriahumana ensina que só os profetas enxergam o óbvio. Seja como for,achei a crônica citada de uma sagacidade deliciosa. Muito tempodepois, sinto, na própria carne e na própria alma, a influência dadistância nas leis da emoção. Imaginem que recebo de Natal este súbito e inapelável telegrama: — "Sua Peça 'Toda Nudez' QuasePronta, Elenco Ensaiando, Artistas Unidos Grupo Vencedor FestivalPascoal, Censura Proíbe Em Todo Território Nacional. Que PodemosFazer? Abraços etc. etc.". 

Este o telegrama. A princípio, a proibição me pareceuespantosamente irreal. Toda nudez será castigada foi levada em1965 no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Não sofreu ocorte de uma vírgula. Ao terminar o ensaio geral, os seus trêscensores, inclusive Ayres de Andrade, aplaudiram, de pé, o texto e oespetáculo. E por que, e a troco de que, de repente, vem a censura eimpõe uma interdição bestial? 

Só vejo duas hipóteses: — ou é má-fé cínica, ou obtusidadecórnea, ou ambas. Ora, eu sou o sujeito mais próximo de mimmesmo e de minha obra. E a coisa repercutiu brutalmente em mim.Se me perguntarem qual foi a minha primeira reação, eu diria: — avergonha de ser brasileiro. Tive, sim, uma vergonha total e como queo arrependimento de ter nascido aqui.

 Estou, porém, diante do fato consumado. O telegrama faz apergunta, sem lhe achar a resposta: — "Que faremos?". Sim, quefaremos? Agora, vou ficar esperando um manifesto, uma passeata euma greve. Tenho vinte e tantos anos de vida autoral e sofri seisinterdições (cinco peças e um romance). Por uma singularcoincidência, nas seis oportunidades, não mereci a solidariedade deninguém. Álvaro Lins, em plena atividade crítica, limitou-se a dizer:— "Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um casode polícia". Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade àpolícia. No fundo, os nossos intelectuais achavam que eu era mesmoobsceno e que devia ser mesmo interditado. 

Mas as coisas mudaram. E, se as coisas não mudaram, mudouo dr. Alceu. E espero um artigo do dr. Alceu. Todo santo dia hei decomprar o Jornal do Brasil. Quero ver o nosso Tristão de Athayde,com a sua nobilíssima indignação, fulminar o crime contra a inteligência. E também penso na classe teatral, que é a minha. Vocêsnão são de teatro, nem sabem nada. Mas a classe teatral é umcomício nato. Nas suas assembléias, há iras sublimes. Pois eugostaria de ver as indignações da classe teatral salvando a minhapeça. 

Recentemente, entrei numa greve dos meus colegas. Levei-lhesa minha comovida solidariedade. E mais: — sentei-me na escadariado Teatro Municipal. Embora não visse em tal ato nenhum heroísmo,sentei-me com os outros. Estavam todos indignados; hipotequei-lhesa minha indignação. O motivo da greve era também a interdição deuma peça, ou duas, não me lembro mais. 

Em seguida, houve uma nova greve. Por que, já não sei. Aminha solidariedade tem um automatismo inexorável. Juntei-me aoscolegas. Todos os teatros deviam cerrar suas portas. E só umpermaneceu escandalosamente aberto: — o da sra. Eva Todor.Imediatamente, despachou-se um piquete aguerrido. A atriz estavano palco representando e ganhando o pão. Impediram-na derepresentar e de ganhar o pão. 

Vejam vocês como há, de autor para autor, dessemelhançasirritantes de sorte. A classe trata os outros a pires de leite. E eu,mais interditado do que qualquer um, sempre estive em crudelíssimasolidão. Alguém dirá que falo assim por despeito, por ressentimento.Não nego. Sou despeitado e sou ressentido. Mas tenho atenuantes.Nas minhas seis interdições, ninguém impediu a sra. Eva Todor detrabalhar. Quero crer que chegou o grande momento. InterditaramToda nudez será castigada. É hora, pois, de mandar a sra. Eva Todordevolver o dinheiro das entradas. 

Realmente, mais que uma assembléia da classe, mais do queuma greve, estou interessado numa passeata. Sim, um desfile contraa interdição de Toda nudez será castigada. Há, em qualquerbrasileiro, uma alma de cachorro de batalhão. Passa o batalhão e ocachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional. 

Mas já não sei se quero mesmo a passeata. Em passadorecente, houve um desfile patético. Cem, duzentos cartazes dandomorras ao imperialismo. O diabo é que, em vez de morte, estava láescrito "muerte". Imaginem se há a passeata em favor da minha peça.Cem, duzentos cartazes dando morras à censura em castelhano. Emtal caso, eu teria também vergonha de ser brasileiro.

 [13/5/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora