A VACA PREMIADA

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Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangentedo que o brasileiro premiado. O inglês, não, nem o francês. Um ououtro recebe qualquer prêmio com modéstia e tédio. Quando deram aChurchill o Nobel de literatura, ele nem foi lá. Mandou a mulher econtinuou em Londres, tomando o seu uísque e mamando o seucharuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmosuperior descaro.

 E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro que, de repente,recebesse um telegrama assim: — "Ganhaste o prêmio Nobel.Gustavo da Suécia". Pergunto se algum brasileiro, vivo ou morto,teria a suprema desfaçatez de mandar um representante, como fez oChurchill? Por exemplo: — o meu amigo Otto Lara Resende. Se aAcademia Sueca, por unanimidade ou sem unanimidade, por simplesmaioria, o preferisse.

 Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fascina. OOtto, prêmio Nobel. Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou oÉrico Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: — qualquer um de nósiria, a nado, buscar o cheque e a medalha. Nem se pense quefaríamos tal esforço natatório por imodéstia. Pelo contrário.Nenhuma imodéstia e só humildade.

 A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui,certa vez, a uma exposição de gado. E o júri, depois de não seiquantas dúvidas atrozes, chegou a uma conclusão. Vi, transido,quando colocaram no pescoço da vaca a fitinha e a medalha. Claroque a criança tem uma desvairada imaginação óptica. Há coisas quesó a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira eselvagem.

 Cabe então a pergunta: — e por que até as vacas brasileirasreagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um denós carrega um potencial de santas humilhações hereditárias. Cadageração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias.No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas,que cospe na própria imagem. Eis a verdade: — não encontramospretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.

 Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Umsimples "bom-dia" já nos gratifica. Nunca me esqueço de minhainiciação jornalística. Trabalhei num jornal que não pagava. Mas odiretor, um escroque perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso doque uma cocote, era o gênio do cumprimento. Não passava por umfuncionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe sorrir, e sem lhe piscaro olho. 

E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para ofaxineiro, a própria remuneração. Fiz as divagações acima porqueassisti, no último sábado, à entrega dos prêmios do Museu daImagem e do Som. A cerimônia ia ser televisada. Disse de mim paramim: — "Vamos ver se o brasileiro mudou".

 Fiz, preliminarmente, uma breve autocrítica. Eis o que meperguntei: — "Será que estou frustrado, ressentido, humilhado, denão ser um deles?". Há vinte anos, quando comecei minha carreira,queria ter o meu nome no jornal de qualquer maneira e a qualquerpreço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim mesmo. Assinava comum nome inventado e mandava publicar. E, depois, vinha perguntarcá fora: — "Conhece esse sujeito? Escreveu sobre mim. Não sei quemé". Pois bem: — e comecei a entrar em todos os concursos de peças,de reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo mundo erapremiado, menos eu. No primeiro ano, segundo, terceiro, euestrebuchava de humilhação. Por fim, veio um doce e compassivo fatalismo. Repito: — "não ser premiado" é o meu hábito de vinte etantos anos.

 (Minto. Outro dia, recebi no Chacrinha o prêmio de melhorcronista esportivo de jornal. E a verdade é que reagi como brasileiro.Escolhi o meu melhor terno, a minha melhor gravata, o meu melhorsapato. Meia hora antes estava na televisão. Lá encontrei o JoãoSaldanha, também contemplado. Vagando pelos corredores da TVGlobo, à espera da nossa convocação, tínhamos, os dois, um arindubitável de prêmio Nobel.)

 Volto ao sábado. Sala Cecília Meireles. Como o governo daGuanabara estava ligado aos prêmios, compareceu o governadorNegrão de Lima. Ele, em pessoa, faria a entrega. E, para maior ênfasedo acontecimento, puseram lá uma banda de música. Um dospremiados era Oscar Niemeyer. Outro: Glauber Rocha; outro ainda:Pelé.

 Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa. A vacajá citada recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com umamedalha, E nasceu nos seus dentes toda uma espuma; a gratidãoescorria-lhe em forma de baba elástica. Eis o que me perguntava: —como reagiria Oscar Niemeyer?

 (Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pueril eterrível. Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar,a nado, o prêmio Nobel.) E, de repente, o ator Sérgio Cardoso diz onome de Oscar Niemeyer. A platéia quase veio abaixo. O nome dePelé foi muito menos aplaudido. E, no entanto, para o gosto popular,as botinadas estão muito mais próximas do sublime do que aarquitetura. 

Na minha casa, eu adulava a minha úlcera com pires de leite.E não entendia mais nada. Por que esse amor súbito e ululante porum arquiteto? Desde quando a arquitetura teve, no Brasil, um FrankSinatra? Estava vendo a hora em que os presentes, de pé, iam berrarcomo nos comícios do Brigadeiro: — "Já ganhou! Já ganhou!". Mas por que essa ovação de Cauby Peixoto? Era a pergunta quecontinuava sem resposta.

 E, súbito, percebo toda a verdade. Não era o arquiteto, era ogênio. O povo não gosta das invenções plásticas de Oscar Niemeyer.Abomina. O que o povo adora é aquele prédio do elixir de Nogueira,ali na Glória, perto do Relógio. O homem comum entende que a casafeita por Oscar Niemeyer não serve para dormir, amar, morrer ousimplesmente estar. Não importa. É gênio.

 Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovaçãoformidável. O grande público não gosta dos seus filmes, não entendeseus filmes. Mas é outro gênio. Chamam-no de maluco. A figura quetenha essa lenda de insânia fascina o povo. Lembro-me de umconhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer, deslumbrado:— "Não entendi nada". Estava gratíssimo ao filme e ao seu autor. Opovo desconfia do que entende, desconfia do que gosta. E GlauberRocha, ao surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagemdo que as cerdas bravas do javali.

 Subiu a escadinha do palco com um passo ágil, elástico, quasealado. Mas nem Glauber, nem Oscar Niemeyer fizeram a concessãode um sorriso. A cara do Niemeyer estava fechada, inescrutável,como certas máscaras cesarianas. (Ah, como o brasileiro precisa terum gênio à mão. Sim, para apalpá-lo, farejá-lo. A simples existênciade um gênio patrício já nos permite um mínimo de auto-estima.) E,por fim, o Luís Carlos Barreto, o formidável animador do CinemaNovo, foi receber o seu. Subindo, disse, à queima-roupa, aogovernador: — "O dinheiro já saiu". E aí, nessa voracidade jucunda,estava todo o Brasil. 

[23/1/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora