Sou, como Didi, um brasileiro canicular. (Falo do grande Didi,o bicampeão do mundo, o virtuose, o estilista que inventou a folhaseca.) Já apresentei o autor, preciso falar da obra. A chamada folhaseca é uma bola que desenha uma curva encantada; e vai-se enfiarna última gaveta etc. etc. Resta dizer que última gaveta é umaimagem da gíria futebolística.
Um dia, o Real Madrid contratou Didi. Lá foi ele. No Brasil, eraum craque plástico, elástico, acrobático. Quando entrava em campo,a própria bola o reconhecia e vinha lamber-lhe as botas como umacadelinha amestrada. E, súbito, conhece Didi a solidão do frioeuropeu. Deixou de ser o grande Didi. Uma aragem fina e leve já odeprimia e já o derrotava. Nos grandes jogos parecia um entrevado. Eo que o liquidava era a nostalgia crudelíssima do sol brasileiro.Gostava mesmo de se incendiar na luz brutal.
Repito que sou igualmente canicular. Só entendo o verão. E,por isso, nada me espantou mais do que o nosso último inverno. Sóconhecíamos o falso inverno da folhinha. Pela primeira vez fazia friona cidade e, repito, um frio cadavérico. O próprio sol era gelado. Eesse frio foi uma experiência inédita para os cariocas. Senti entãouma inconsolável saudade dos bons tempos em que o sol brasileiroderretia as catedrais.
Até que, um dia, saio de casa e dou de cara com uma vizinha.É uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Deveter varizes. Eu não as vi, mas deve ter varizes. Ia Passando e parouno portão do meu edifício. Conversamos uns três minutos. E eu nãotirava a vista do seu pescoço. Eis o que via: — um colar de brotoejas. Manhã gelada. Mas as brotoejas eram um sinal profético de calor. Eutinha hora marcada e já me despedia. Foi então que a vizinhasuspirou e disse: — "Tudo é possível, tudo é possível". E paramos poraí.
Vejam vocês as voltas em que se perde uma crônica. Falei dacanícula carioca, de Didi, o artista plástico da folha seca; mencioneia frase da vizinha e seu colar de brotoejas. Mas não disse umapalavra sobre o personagem que inspirou a presente "confissão". Falode Neruda, Pablo Neruda, o homem que, segundo Sartre, estámerecendo um urgente prêmio Nobel. Neruda não é um chileno comooutro qualquer. Seria mais exato chamá-lo de poeta do mundo.
Há muito que o nosso Pablo assumiu a dimensão da poesiasocial. Houve um tempo, todavia, em que ele fazia versos à maneirado nosso J. G. de Araújo Jorge. Bem me lembro de um dos seuslamentos mais dilacerados. Dizia assim: — "Tão curto o amor e tãolongo o esquecimento". Essa era a melancolia do antigo Neruda e,ouso mesmo dizê-lo, do ex-Neruda. Dizia-me meu amigo: — "Nerudaé um Rubem Braga de penacho". Vou ser franco: — Prefiro o RubemBraga.
Mas o poeta que aqui desembarcou, de supetão, não tem nadaa ver com o do "amor tão curto" e do "esquecimento tão longo". Sónão mudou fisicamente. A mesma cara forte, vital e bovina.Exatamente, bovina. Sempre o achei parecido e não sabia com quem.Aquela cara enorme, o beiço largo, o perfil, o pescoço, um certo peso,o olhar — tudo me lembrava alguém. Mas quem? Até que, ontem,morreu o suspense. Vi a sua cara na primeira página de O Globo; epercebi toda a semelhança. Lembra o boi e, repito, um boi admirável,quase divino, mas indubitavelmente um boi.
E aconteceu o que era fatal: — a entrevista coletiva. Juntou-sena casa do Rubem Braga a rapaziada do jornal, do rádio e datelevisão. Todos presentes, inclusive fotógrafos, o futuro prêmioNobel dispôs-se a responder. A primeira pergunta — ou uma das primeiras — foi sobre a Tchecoslováquia. Justiça se lhe faça: — aprincípio, Neruda não queria responder. Era apenas um poeta quevinha falar dos seus livros. Só dos livros? Só dos livros. Era poucopara a fome da reportagem. Ante a cruel insistência dos rapazes, opoeta resolveu falar sobre tchecos e russos. Lendo sua entrevista,pensei na vizinha: — "Tudo é possível".
Antes não o fizesse. E mais uma vez percebemos que não háopinião intranscendente. O simples fato de opinar compromete aoinfinito. Quando vetara o assunto, Neruda foi de uma sábia, de umaclarividente pusilanimidade. Mas se definiu. Eis o que ficouevidentíssimo: — a pusilanimidade do silêncio teria sido mais dignado que a coragem de dizer o seguinte: — "Eu estou com os doislados. Com a Rússia e com a Tchecoslováquia".
Explicou: — "Sou amigo da Tchecoslováquia, país que me deuasilo quando dele precisei, e também sou amigo da União Soviética".Por isso, quando perguntam com quem está, ele não se aperta eresponde: — com os russos e com os tchecos. Por outras palavras: —está com o crime e com a vítima, com a vítima do estupro e com oautor do estupro etc. etc. Disse eu que, em certos casos, é melhor acovardia do silêncio do que a coragem de certas opiniões. Já retifico.Em verdade, não houve coragem nenhuma. A frase deve ser lidaassim: — pior do que a pusilanimidade do silêncio foi apusilanimidade da resposta.
Se a Rússia pode invadir a Tchecoslováquia, tudo é permitido.Trata-se de um crime que envolve o próprio destino da pessoahumana. E vem o nosso Pablo e diz que "a Tchecoslováquia devecompreender". Vejam: — ainda por cima, "deve compreender". Quemo diz é o poeta, e o poeta sabe o que diz. Cabe então a pergunta: — eo que é que os miseráveis tchecos "devem compreender"? RespondeNeruda: — que a Rússia perdeu muitos homens na guerra. Ah,perdeu? Também os Estados Unidos perderam, e a Inglaterraperdeu, e a França, e outros, e outros. Portanto, vamos nos invadir uns aos outros.
Apenas o poeta se esquece de que a Rússia fez o pactogermânico-soviético; que se tornou aliada de Hitler; que colaboroulealmente no esforço de guerra nazista. E afirma o nosso ilustrehóspede que a Rússia libertou os tchecos. Não libertou ninguém. Oque a Rússia vinha fazendo era a cínica e brutal exploração daTchecoslováquia. Esta foi uma nação escrava com os nazistas econtinuou escrava com os comunistas.
Vejam vocês: — os jornais gastam tinta e papel; a televisãogasta a sua imagem; o rádio gasta os seus microfones; nós gastamosa nossa paciência. E tudo para Neruda proclamar que está com osdois lados. Só imagino a amarga perplexidade do leitor, do ouvinte,do telespectador. Pablo Neruda é um dos maiores poetas do mundo;quase prêmio Nobel; amigo de Sartre e por Sartre amado; homem desensibilidade, de pensamento, de imaginação. Era de se esperar quevisse a invasão através de uma óptica própria e monumental. Sim,ele saberia dizer verdades jamais suspeitadas. Muito bem: — e opoeta me sai um Luvizaro. Ou por outra: — nem o Luvizaro teriadescaro tamanho. E é um intelectual. Chamado a opinar sobre oexpurgo de intelectuais, diz: — não pode condenar a Rússia, porquetem amigos lá; tampouco pode condenar a Tchecoslováquia, porquetambém tem amigos na Tchecoslováquia. Agora compreendo odesespero de um amigo meu. Fez dois ou três ensaios literários edesistiu da literatura. Um dia, alguém o apresentou como"intelectual". Corrigiu: — "Não sou intelectual". O outro insiste: — "Éintelectual, sim". O meu amigo apontou o dedo: — "Se me chamar deintelectual outra vez, parto-lhe a cara", É triste, é humilhante serNeruda.
[13/9/1968]
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A Cabra Vadia
DiversosNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...