Depois do último Carnaval, passei uma semana escrevendosobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de "Flor deObsessão". Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinhaescrito, no envelope, "Nelson Rodrigues" e, por baixo do nome: —"Flor de Obsessão". (Há, em tal metáfora, como que um odor defolclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos nãoexageram. Eu sou assim, e digo mais: — convivo muito bem com asminhas idéias fixas.
E a minha fixação, nos quatro dias de Carnaval, foi a nudezunânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante: —não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não.Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, aprópria palavra "pudor" é tão antiga e irreal como, como... Vejamosuma palavra bem fora de moda. Já sei: — "supimpa". Aí está: —supimpa.) Mas as mulheres se despiam para milhões detelespectadores. Milhões.
Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, derepente, aparece uma conhecida minha, aliás uma menina linda,linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, morenocomo um galã do neo-realismo italiano. O jato batera numamontanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, umaaliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue emcima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.
Por uma fúnebre coincidência, as câmaras não tiraram o olhoda viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto eralindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto.Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo ea cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangelesca.
Depois do Carnaval, andei tendo sonhos hediondos. E, nopesadelo, era atropelado por milhões de umbigos, por milhões decicatrizes. Eis o que eu queria dizer: — na série de artigos em tornoda festa de nus disse eu o que me parece ser uma verdade eterna: —nada mais feio do que a nudez sem amor. O ideal seria que só o bemamado pudesse ver um decote. Dirá alguém que o decote é tãopouco. Sei que é tão pouco. Mas só o bem-amado devia olhar odecote. Escrevi mais: — como é triste e mesmo vil a nudez queninguém pediu, que ninguém quis ver e que nenhum desejo explica.A Marilyn Monroe também se despiu para uma folhinha. Mas teveum preço, um cachê. Era um impudor mercenário. Mas parece maisvil a nudez de graça, a nudez sem gratificação.
Foi mais ou menos isso que escrevi em três ou quatro artigos.E, um dia, recebo a carta de uma leitora indignada. Começou por mechamar de "velho". Até aí nada demais, porque sou realmente umamúmia. Mas ela continua e logo percebo que não se trata de umavelhice de idade, mas de espírito. E dizia mais que só um velhopodia-se interessar pela nudez feminina. Os jovens tinham mais emque pensar etc. etc. Achei a carta da leitora uma delícia rara. Dois outrês dias depois, conversei com um clínico famoso. E ele estavaapavorado. Disse-me que nota nas novas gerações um ressentimentocontra o sexo, contra o amor e contra a mulher. Isso da parte doshomens. E as meninas têm a mesma aridez. Os jovens de ambos ossexos sentem o tédio antes do amor e esquecem antes da posse.
Vejam bem. Se a leitora e o médico têm razão, os únicoshomens válidos são os velhinhos nostálgicos e espectrais da porta daColombo. E os moços plásticos, elásticos, ornamentais da praia?Bem. Sempre me pareceu que, aos vinte anos, o sujeito não sabenem como se diz "bom dia" a uma mulher. Simplesmente não sabe como tratar uma mulher. Mas no passado a vitalidade o salvava.Vitalidade talvez cega, talvez obtusa, talvez brutal. Mas, repito, essavitalidade era alguma coisa. E, de re-pente, vêm a leitora e o médicoe dizem: — só os velhos ainda se interessam por amor, só os velhosainda se interessam por sexo.
A princípio, fiquei em pânico. Mais tarde, pensando melhor,cuidei que tinha sido um exagero da leitora e do clínico. Não erapossível. E, no entanto, vejam vocês: — acabei de ler um prodigiosoartigo de Nelsinho Motta. Sim, o escritor, o jornalista, o ensaísta, osociólogo, o letrista, o homem de televisão. Não sei se vocês oconhecem. Se não conhecem, tentarei descrevê-lo, por dentro e porfora. Fisicamente, é pálido e diáfano como Werther ou, se preferirem,como Alfredo da Traviata. Não sei se o tal Alfredo tinha costeletas.Mas quero acreditar que, de costeletas, o Nelsinho seria o próprio.Ainda no terreno da ópera, lembra também o pajem do Rigoletto. E,por dentro, é de uma fragilidade ideal. Sua estrutura psíquica nãoresistiria a um sopro de apagar velinha de aniversário.
(Por um lapso indesculpável, eu ia-me esquecendo de um dadofundamental: — nunca foi à praia. No momento em que cadabrasileiro é moreno como um havaiano de Hollywood, a palidez doNelsinho Motta faria o maior sucesso nos velhos folhetins.) E foi essaflor de biscuit que, subitamente, escreveu um artigo feroz. Imaginemum javali com todas as cerdas eriçadas. Assim é Nelsinho Motta naprimeira e admirável fúria de sua vida. O pretexto foi a músicapopular.
O autor fala como jovem e em nome dos jovens. Os idiotas daobjetividade diriam que a ira do Nelsinho (só comparável à de Zola)tem motivos menos nobres e estritamente competitivos. Masvejamos. Ele arrasa os compositores que pretendem "uma músicapura, romântica, que eleve a alma"; e que querem impressionar asmeninas (o que é o caso de todos os brasileiros vivos e mortos). Diz ocaro Nelsinho que essa espécie está-se extinguindo. Com um pouco mais, estaremos todos desinteressados de meninas. Essa castraçãodo homem brasileiro chega a ser comovente.
Em tom épico, fala da juventude que lutou nas ruas de Paris.Mas que luta? Contra os paralelepípedos, contra os carros virados?Não houve uma cabeça quebrada, uma fratura, nada. E continua oNelsinho. Fala nas passeatas brasileiras. Realmente, as passeatas!Alguém viu um negro um operário, um roto, um esfarrapado? Mas oautor afirma que as passeatas vão salvar o Brasil. E, súbito, ele citao Chico Buarque de Holanda e o inclui na lista dos jovens que nãogostam de amor. Mas é falso. O Chico é o anti-Roda viva. A Banda é oanti-Roda viva. Não há autor mais lírico, e que toque mais àsmeninas, e mais terno, e mais "sentimentalóide", e mais"desvinculado do mundo em que vivemos". Aí está: — o vil ecanceroso mundo em que vivemos não admite, segundo o Nelsinho,nem amor, nem sexo, nem mulher e, muito menos, homem.
E mesmo o Nelsinho, que é o próprio Werther. Como ele seexplica, como ele se justifica? Mas, de qualquer maneira, acredita empasseatas. Na próxima, ponha um negro na marcha; um operário;um esfarrapado; um torcedor do Flamengo; uma crioula dando opeito seco ao filhinho recém-nascido. Não me comove a passeata dasclasses dominantes. É preciso tirar a fome brasileira de suahedionda solidão.
[1/8/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...