O CAFAJESTE NÃO VIAJA

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Qualquer um pode viajar, menos o brasileiro. O inglês pode irpara a China e jamais será mandarim. Do mesmo modo, a inglesa.Uma inglesa, em Tóquio, não será jamais uma madame Butterfly. Eassim o francês, ou o alemão, ou a alemã. Ao passo que o brasileiro,a partir do Meyer, começa a usar os sotaques do seu itinerárioturístico.

 E, por vezes, não é preciso nem a viagem. Basta um telegrama.Recentemente, os estudantes franceses fizeram uma singularrevolução francesa. Tudo consistia em arrancar paralelepípedos evirar carros. Foi talvez a primeira revolução feita sem uma únicaidéia. Os jovens arrancavam os paralelepípedos, viravam os carros enada mais. Exatamente: — nada mais. 

E houve um momento em que o poder ficou vago. A históriapensou: — "Vem por aí um novo De Gaulle". E o velho De Gaulle nãomoveu uma palha, não tirou uma cadeira do lugar. O poder estavalá, nas alegres barbas da "jovem revolução" e repito: — o poderoferecia-se como um fruto maduro, próximo e indefeso. Bastava osimples gesto de colhê-lo. E ninguém fez esse gesto. Nem estudantes,nem socialistas, nem comunistas, nem intelectuais, nem operários.Ninguém. 

Um conhecido meu abria os braços e perguntava: — "Mascomo? Uma potência espiritual, como a França, não tinhaninguém?". Era a humilhante verdade: — ninguém. Ou por outra: —tinha o velho De Gaulle e só De Gaulle. E, portanto, foi o Herói que,com o seu tédio sardônico, ficou com o poder não possuído porninguém. 

 Mas não era isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer éque os nossos jovens se embebiam das notícias de Paris. Vejamvocês: — é possível, pelo telégrafo, mudar as nossas idéias,sentimentos, valores. E, então, começou aqui uma efervescênciaferoz. Também carros virados. Ninguém arrancou os paralelepípedos,porque somos uma cidade asfaltada. Fez-se uma "jovem revolução"liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo era apócrifo. Aqui,ninguém teve um gesto próprio, uma fúria autêntica, um palavrãooriginal e profundo. 

Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de suapaisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagirá ele, em Paris,Londres, Berlim ou Nova York? Está lá submetido a pressõesinsuportáveis. Bem me lembro do meu amigo Otto Lara Resende.Passou dois anos na Europa. E, quando voltou, era outro Otto.Fomos passear em Ipanema. Diante do poente do Leblon, inaugurouele uma de suas frases máximas: — "Paisagem é verba!". Insinueique o nosso poente não faz vergonha. Mas ele insistiu: — "Poente éverba!". 

E, mais uma vez, verifiquei que raríssimos brasileiros podemviajar além de Bangu. O outro caso. Há três ou quatro meses, o meuamigo Carlos Heitor Cony bateu-me o telefone: — "Nelson, vim medespedir". Como seu tom era meio lúgubre, ainda brinquei: — "Vaiste matar?". Respondeu: — "Ainda não. Vou viajar". Protestei: — "Nãofaça isso". Conversamos uma meia hora. Insistia eu: — "O brasileiroque viaja volta mais burro". Jurei: — "Não conheço um brasileiro quenão voltasse mais burro". Ele resistiu até o fim: — "Você exagera.Não é nada disso". Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei adizer-lhe que ele precisava ser o cafajeste total. Não exagerava. Defato, um maravilhoso cafajeste está inserido nele, está enterrado nelecomo um sapo de macumba. E o cafajeste não viaja. 

O pior é que a viagem ia ser imensa. Passaria por Berlim, Paris,Moscou, Londres e, até, Pólo Norte. Imaginei que voltaria um ex-Cony, um anti-Cony. E me preocupava também o destino do seuriso. O meu amigo tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como osantigos sátiros vadios. Imaginei que a viagem pudesse emudecer-lheo riso.

 E o Cony partiu. Três meses de ausência densa, cruel,desesperadora como a morte. Outro dia, paro num sinal fechado.Estou em cima do meio-fio, esperando, quando um automóvelencosta e alguém anuncia: — "O Cony chegou! O Cony chegou!".Pouco depois, entro na redação e ligo para o amigo. Ia perguntar-lhe:— "Como é? Ficaste mais burro?". Mas não estava. Deixei o meunome. E esperei em vão que me telefonasse. Nada. No dia seguinte,ligo outra vez. Também não estava. Liguei outras vezes. Nuncaestava. Ele, aqui, a dois passos, parecia longínquo como se aindaexistisse entre nós dois a distância que vai de Ipanema ao Pólo, doCastelinho a Cingapura. 

Sou um pessimista e logo imaginei: — "É outro HélioPellegrino". Já falei do abismo ideológico que se cavou entre mim e oHélio. Tenho escrito sobre passeatas, d. Hélder e dr. Alceu. Emconfissões sucessivas, acusei as esquerdas de uma alienaçãomonstruosa etc. etc. O Hélio não gostou. Dizia-me com a sua belavoz de Paul Robeson branco: — "Não é o momento! Não é omomento!". Enquanto o Hélio falava assim, em arroubos, eu pensavanos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e poroutros. Ferido como estou, não ouso trapacear comigo mesmo e comos demais. Digo o que sinto e o que penso. Apenas. 

Todavia, na véspera dos meus anos, o Hélio ligou para mim.Ninguém mais doce: — "Pode dizer nos seus artigos que você é dosmeus amigos fundamentais". Dias antes, de público, eu o desafiara ajantar comigo no meu aniversário. E o Hélio explicava: — "Mas nãoposso jantar contigo amanhã, porque vou sair do Rio". Era o décimoencontro que ele adiava. Jurou, porém: — "Janto contigo na semanaque vem". Isso foi no dia seguinte. Não me concedeu um mísero telefonema. Se eu fosse esperar por ele, e seu prodigioso jantar,estaria morto de fome.

 E já me parecia que, como o bom Hélio Pellegrino, o Conyfugisse de mim. Não queria, decerto, conspurcar-se com o meu "oba"ou com o meu aperto de mão. Pois bem. Até que há o temidoencontro. A coisa ocorreu no Museu da Imagem e do Som. Ele iadepor sobre a figura e a obra de Mario Filho. Assim que o vi, e ele meviu, houve o suspense de um ou dois segundos. Em seguida, veio oabraço desesperado, o riso violento e recíproco e a certeza de queéramos amigos para sempre. Disse-me Cony: — "Recebi o teu recado.Mas não telefonei, de propósito. Não queria ver ninguém. Porenquanto, não". Foi aí que eu reparei: — era um outro Cony queestava na minha frente, talvez mais atormentado e talvez mais puro.Sim, um Cony trabalhado pela solidão, um Cony de uma outradensidade. Perguntei, aflito: — "E a viagem? E a viagem?". Varara omundo e fora até ao Pólo Norte. E eu: — "Que tal? Que tal?". Respondeu sério, cruel: — "Tudo a mesma coisa! Tudo a mesma coisa!". Viraa Vênus de Milo: — "Tem erisipela". E da Gioconda: — "Tem mauhálito". "O Louvre, uma impostura." Estava triste e exausto de tudo oque vira. Passara na Rússia, na França, na Inglaterra, naTchecoslováquia. E, por fim, fez um resumo desesperado de tudo: —"O homem fracassou".

 [18/9/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora