CONTRA A VIOLÊNCIA

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Apanho o jornal e vejo o telegrama: — Hollywood declaraguerra à violência. São atores, atrizes, diretores, roteiristas. É umaunanimidade, mais uma unanimidade. Assim somos nós, todos nós.O nosso gesto, o nosso ódio e o nosso grito — já não precisam nascerna solidão. O homem quer ser irresponsável. Na hora do protesto, daira, todos providenciam uma urgente unanimidade. Ninguém está só.Matamos e morremos em grupos, em hordas, em maiorias, emassembléias, em comícios.

 No manifesto de Hollywood, o que existe, precisamente, é opânico da responsabilidade nítida, indivisível, total. Não há umnome, uma cara. Cada qual se esconde debaixo da unanimidadecomo de uma cama. Todos são contra a violência, a crueldade, osadismo, o terror. Vejam e pasmem: — daqui, para o futuro,Hollywood só fará filmes com bons sentimentos. 

Não tenho nada a objetar. É uma reação linda, embora tardia.Mata-se demais no cinema, morre-se demais, trai-se demais, odeiase demais. E há, na tela, um erotismo difuso, volatizado, atmosférico.A platéia respira voluptuosidade. E tudo nos é transmitido em formade perversão. Portanto, parece muito cabível e sábia a correção éticaque se propõe. Até aqui, Hollywood viveu, inversamente, dos maussentimentos. Com que técnica e com que arte, com que fotografia ecom que direção, soube ela tecer as mais lindas fantasias sobre asnossas abjeções! 

Para não ir mais longe, aí está Belle de jour, Quem o vejapercebe esta verdade absoluta: — o "grande diretor" não pode teressa mediocridade de virtudes e defeitos que se exige de um marido burguês. Para pôr de pé um personagem sádico, cruel, voluptuoso,ele terá de ser de um sadismo, ou de uma voluptuosidade, ou deuma crueldade profunda. E assim o intérprete, e assim o fotógrafo, eassim o autor dos diálogos. Um filme como Belle de jour exige todauma equipe de possessos. Aquela esposa alucinatória é o próprioBuñuel. Sim, ela é ele. 

Diria eu que a humana sordidez tem sido o ganha-pão dos que,hoje, tentam uma árdua, frenética e antieconômica purificação. Senão existisse no homem o lado podre, se não existisse no fundo decada qual a lama inconfessa e encantada, também não existiria aindústria cinematográfica. Ah, o cinema nos compromete desdemeninos! Bem me lembro dos mitos que Hollywood teceu para ascrianças. Um deles foi Tom Mix. Outro, Rolleaux; outro ainda,William S. Hart. Pois Tom Mix subia no cavalo e dava tiros em todasas direções. Matava, e como matava! Era assassino por todas ascrianças da platéia.

 E, de repente, a unanimidade resolve acabar com o terror. Umadas primeiras vítimas de tal providência é um velho conhecido nosso:— o vampiro. Aí está uma figura fundamental do cinema. Tenho umtio que passa anos sem ver um filme. Diz ele que o cinema, como ojornal, mente muito. Mas não perde um filme de vampiro. Certa vez,soube que estava levando um em Vigário Geral. Atravessou a cidadee foi lá. Por que será que esse tio, e outros tios, e outras tias — têmum tal delírio pelos vampiros? Deve ser uma fascinação mundial. Aindústria cinematográfica não seria o que é, o império que é, se nãotivesse, no seu passado, presente e futuro, as bilheterias do vampiro.

 Abro um breve parêntese. Ainda ontem estive com o Palhares, ocanalha. Sim, "o que não respeita nem as cunhadas". E o Palharesme dizia, com um agudo sentimento de frustração: — "Nunca houveum vampiro no Brasil". O canalha chama isso de "lapso", que se deveatribuir ao subdesenvolvimento. E, de fato, o sujeito aqui nasce comos pendores mais imprevisíveis. Conheci um que era um "barbeiro de necrotério" nato. Teve as melhores ofertas. Certa vez, um vizinhoofereceu-lhe sociedade numa barbearia. Ponto ótimo, aluguel muitoem conta. Repeliu a hipótese com a mais intransigente repugnância.Só queria escanhoar cadáver. Nada o impediria de exercer estafunção e de cumprir este destino. Pois bem. O Brasil teve bastanteimaginação para dar um barbeiro de necrotério. E nunca pôs nomundo um drácula. Fecho o parêntese.  

Voltemos a Hollywood. O que se propõe, no manifesto citado, éda mais pura e deslavada alienação. Nada mais idiota do que fazerfilmes sem violência para uma platéia de violentos. Todas asviolências nos fascinam. Sempre foi assim, e agora mais do queviolência. O cinema trabalha para o mundo que matou Bob Kennedy,chorou Bob Kennedy e, 48 horas depois, esqueceu Bob Kennedy. Oesquecimento veio antes de que murchassem as flores do seu caixão. 

O sujeito entra num cinema e leva a sua tensão exterminadora.Ele odeia e quer ver seu ódio na tela. De vez em quando, a Manchetepublica um cadáver do Vietnã. Não se sabe se o morto é de lá ou decá. Pode ser um herói e pode ser um bandido. O cadáver morreuodiando e continua odiando. Lá está seu gesto retorcido de ódio. Eassim a fúria do homem continua para além da vida e para além damorte. 

E que pobre utopia um cinema sem violência, sadismo, terror emedo! Seria a morte da própria indústria cinematográfica. Hollywooddesabaria como uma cúpula de palitos. Uma destas noites, passeinum sarau de grã-finos. E uma bela senhora dizia, com ummaravilhoso impudor: — "Eu era a própria belle de jour. Fizpsicanálise e não adiantou. Continuei belle de jour do mesmo jeito.Até que fui ver o filme e houve o milagre. A heroína fez por mim,sonhou comigo. Saí do cinema purificada. Era uma menina tão pura,tão sem sexo. Nem alma tinha". 

Assim, o ser humano vai para o cinema lavar as suas abjeções.Já estou acabando e queria apenas acrescentar: — Hollywood devia fazer precisamente o contrário do que exige a sua tola unanimidade.Mais do que nunca, deve fabricar os filmes hediondos. O homemprecisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver aface da nossa crueldade. Ou o cinema nos ofende e nos humilha ou,então, deve morrer. E, sempre que o cinema apresenta a sordidez emdimensão gigantesca, cada qual sente o eterno, o sagrado, queexistem no mais vil dos seres. 

[24/6/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora