O PALAVRÃO HUMILHADO

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Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona. Lá,chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros,Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, ummandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas faleina figura que mais me impressiona e aqui está seu nome: — aaeromoça.  

A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opçãoprofissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muitoetc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profissional não serábem profissional. É como se ela estivesse preferindo morrer. Para aaeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mimno Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estarse despedindo da paisagem. 

Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Resende:— "O Brasil é o único país onde as feias são bonitas". Seja como for,elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graçaparece mais leve, mais efêmera, mais perecível que a das outras. Ah,quando vejo uma delas, sonho: — "Essa vai morrer cedo". 

Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis oque eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem aimpressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tarde. Peloamor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque tenho vários amigosna "festiva". A verdade é que a segurança das nossas esquerdas estáacima de qualquer ameaça ou dúvida. 

O brasileiro simples formou do esquerdista patrício umaimagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 demarço e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas.Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dosralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.

Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — asnossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem avocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábiadistância que vai do Antonio's ao Vietnã. Aí está dito tudo. E, assim,sem arredar pé do Antonio's, e bebendo cerveja em lata, asesquerdas não morrerão jamais. 

O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — "Maselas não fazem nada?". Responderei: — "Fazem". Insistirá o leitor: —"E fazem o quê?". Direi: — "Autopromoção". É a pura verdade. Aesquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e decapitando mariasantonietas, porque está ocupada em se autopromover.

Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O "grandepoeta", o "grande crítico", o "grande ensaísta", o "grande romancista",o "grande dramaturgo" — são membros da "festiva". Gustavo Corçãoacaba de publicar um grande livro. É toda uma meditaçãomaravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, emlugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, ascâmaras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra deCorção.  

É inédita essa capacidade promocional das esquerdas. Elasocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue daburguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seuexclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com umpiparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, namelhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncioem cima dele.

Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mulher,filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jornal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não seipor que, ou por outra: — lembro-me agora. Disse ele que uma peça,ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson esenhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso,concluía o revisor que havia liberdade nos Estados Unidos.

Foi despedido, sumariamente. Vejam como as esquerdas têmpoderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e TV. Dominandoem todas as artes, não podiam deixar de fora o teatro. (Na pintura,aquele que não for da "festiva" terá menos imprensa de que umcachorro atropelado.) E, no teatro, as esquerdas descobriram opalavrão. 

Pasmem para as ironias da vida literária e dramática. Durantedezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro.Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogadosforam interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembrome de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou,por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agoraum "caso de polícia". No mais, nem estudantes, nem escritores,quando passavam por mim, concediam a graça de um "oba". O dr.Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição.Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — "As peças obscenas deNelson Rodrigues".

 O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nemSenhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viriaa usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito,todo um folclore medonho. Segundo corria à boca pequena, eu, todosos dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E asesquerdas tinham, dos meus textos, uma repugnância total.   

Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — opalavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia dolivro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa relaçãoindividualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o palavrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos. 

Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. Épreciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas. O bomteatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar.E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu caro esimpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento.Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo representado emtodos os palcos, o José Celso parece dirigir todas as peças. A doChico, por exemplo, é dele. 

Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão.Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Diziamque o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá paraver e receber o soco na cara. No fim de duas horas e meia, saímos,eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia,entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiudesmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense,tinha mistério, tinha espanto. E a audiência do Rei da vela saíaarrotando a sua satisfação burguesa. 

Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada,horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos personagenssolta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas doBocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de aplatéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como umalagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, depé, aplaudiam, aos vivas. Essa apoteose súbita e feroz frustrou,ofendeu e humilhou o pobre palavrão. 

[31/1/1968]   

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora