A MORTE DO TEATRO

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Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. Ninguém andasó, ou por outra: — a única solidão que conheço, em nossacomunidade, sou eu mesmo. No meio dos meus colegas, eu me sintosó, e tão só, como um Robinson Crusoe sem radinho de pilha. Aopasso que os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contraregras, e os maquinistas são A CLASSE.Não vejam, porém, nas minhas palavras, nenhuma insinuaçãorestritiva. Deus me livre. Diria mesmo que considero a minhasolidão, não uma virtude, mas uma incapacidade. Bem que eugostaria de ter um mínimo de vocação associativa. Gostaria de serninguém ou, por outra, ser apenas GRUPO, CLASSE, REUNIÃO,ASSEMBLÉIA, DISCURSO!Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz CacildaBecker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la?Outrora, eu diria: — "Olá, Cacilda", ou "Bom dia, Cacilda", ou "Tudoazul, Cacilda?". Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda,simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cadaator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso serimpessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim:— "Olá, Comissão", "Olá, Assembléia", "Olá, Passeata".Dias atrás, ao sair de casa, encontro um ator patrício, à esperade condução. Ergueu o gesto e anunciou: — "Vou à passeata!". Disseeu não sei o que ou, melhor, não disse nada, e ele começou a falar.Juntou gente. Não era um ator, era um Discurso, era uma Comissão,era uma Assembléia. Dizia "nós" e não "eu". E, de repente, entraram,de roldão, o Vietnã, Mao Tsé-tung e Guevara. Com mais um pouco, ele sairia por aí virando carros, arrancando paralelepípedos eincendiando a Bolsa (tal como em Paris).E daí a minha admiração pela CLASSE. Em outra ocasião,houve, em São Paulo, um "seminário de teatro". Era de teatro e,como dramaturgo, lá fui eu. Imaginei que íamos discutirrepresentação, técnicas, décor, luz, textos etc. E, súbito, um alienadoqualquer falou em dramaturgia. Quase o lincharam. Um latagãoenfiou-lhe o dedo na cara, aos berros: — "Pensa que nós estamosaqui pra discutir teatro?". O quase-agredido baixou a cabeça, lívidode pusilanimidade. Sentou-se no seu canto e lá ficou, numa solidãode comício de 1° de Maio.Eis o que eu queria dizer: — entendo, como ninguém, asposições da CLASSE. Ótimo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenhauma ênfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de HinoNacional. A política é a grande linguagem do nosso tempo. E cadaqual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toqueideológico. Tudo isso é certo e eu concordo. Mas estão acontecendocoisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade. Não seise vocês conhecem o caso de Norma Bengell. O que aconteceu com afamosa atriz tem mais suspense e mistério do que qualquerHitchcock. Os jornais já comentaram, a TV cobriu, o rádio deu.Vamos aos fatos.Um jornalista norte-americano resolveu assistir à peça deNorma Bengell. Ouviu dizer que se tratava de atriz notável, um valorinternacional, e quis ver. Foi à bilheteria, adquiriu e pagou osingressos, deixou uma propina e foi à vida. Na hora própria, oumelhor, com meia hora de antecedência, estava na porta do teatro.Soube, então, que não havia espetáculo. Deixou passar três ouquatro dias e voltou à bilheteria. Perguntou, com sotaque: — "Háespetáculo?". Havia. E, novamente, comprou os ingressos, pagou edeixou uma propina. Mais tarde, e antes de sair de casa, telefonoupara o teatro. Fez a honrada pergunta: — "Há espetáculo?". Havia. Lá se mandou ele com todos os convidados. Chega e sabe: — nãohavia espetáculo.A partir de então, passou a desconfiar que há qualquer coisade errado, não só no teatro, como no próprio Brasil. Deixou passarmais uns cinco dias. E volta à bilheteria. Pergunta: — "Háespetáculo?". Havia. Pela terceira vez, comprou os ingressos, deu apropina e partiu. Dez minutos antes de abrir o pano, liga para abilheteria e pergunta: — "Há espetáculo?". Resposta: — "Há". Odesgraçado pergunta: — "Posso ir?". E do outro lado: — "Pode vir". Oamericano junta os convidados e chega ao teatro em cima da hora. Eo apunhalam com a notícia: — não havia espetáculo. Desta vez, oque era simples e difusa angústia tornou-se pânico total. O homem eos convidados começaram a achar que o Brasil está louco.Mas não desistiu. Deixou passar mais dois dias. Ei-lo de voltaao bilheteiro. Desta vez, os convidados o acompanharam, todosmortalmente interessados naquele suspense insuportável. Cada umperguntou: — "Há espetáculo?". A resposta foi uma só: — "Sim,senhor". Desta feita ninguém foi para casa. Todos se reuniram numboteco próximo e lá ficaram, esperando a hora de subir o pano. Umprocesso de angústia instalara-se no grupo. E, quando chegou omomento, lá foram eles. Ou por outra: — primeiro, foi um voluntáriofazer um reconhecimento. Informaram que havia o espetáculo.Voltou com a grande notícia: — "Há espetáculo". Todos se juntaram,numa euforia feroz, e foram para a porta do teatro. Não haviaespetáculo, simplesmente não havia espetáculo.Não era mais possível nenhuma dúvida ou sofisma. Aquelessujeitos se convenceram e, para sempre, do seguinte: — não haveriaespetáculo nunca mais, nunca mais. Daqui a duzentos anos, na horade subir o pano, virá um funcionário avisar: — "Não há espetáculo".O tal americano está convencido de que os nossos atores, as nossasatrizes, não representam, de que os nossos diretores não dirigem, deque os nossos cenógrafos não fazem cenários. E talvez seja esta a santa verdade. Dizia-se que o Brasil é umpaís racional. Já não sei, e tenho as minhas dúvidas. Os atores nãorepresentam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta,poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, filme. Sim, as coisasque devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — epor quê? Primeiro, porque tanto o teatro, o romance, a poesia, apintura ou a música vivem de umas tantas ou quantasindividualidades fortes, crispadas, miguelangelescas. E hoje o artistaprefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembléias,discursos e passeatas. O artista é um cadáver. 

[14/7/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora