TELEFONEMA COM SOTAQUE

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Entro na redação e o companheiro avisa: — "Telefonaram prati. Do Paris-Match. O correspondente de lá". No meu espanto,balbucio: — "O Paris-Match? Comigo?". Qualquer telefonema é umajanela aberta para o infinito. Muitas vezes a glória internacionalcomeça no telefone. Tirando o paletó, armei uma fantasia paranóica.Seria talvez uma entrevista. E já imaginava um retrato meu depágina inteira. Sair na revista que só promove Stalin, Buda, MaoTsé-tung, Roosevelt, o príncipe de Gales e o decote de ElizabethTaylor (decote tão robusto, tão bem alimentado).

 E, como um telefonema do Paris-Match é altamente promocional, já os companheiros cravavam em mim o olho da inveja. E,súbito, o telefone bate novamente. Numa tensão sufocante, fecho osolhos e espero o chamado. Ouço a voz: — "Nelson, pra ti!". Saioatropelando mesas e cadeiras, como um centauro. Digo, arquejante:— "Alô! Pronto!". E, como a voz não tem sotaque, rilho os dentes defrustração. Era o alfaiate. Destratei-o: — "Eu não sou o únicobrasileiro que deve! Sossega o periquito!". Bati com o telefone. 

Sentei-me. E já me afligia e humilhava a gíria sórdida. Nomomento em que a imprensa européia me procurava, não me perdoeiaquele "sossega o periquito". No meu canto, pedi pelo amor de Deusum telefonema com sotaque. Três ou quatro minutos depois, souchamado, outra vez. Ainda sondei o contínuo: — "Tem sotaque?"."Sim." Da minha mesa para o telefone, tive tempo de imaginar oseguinte: — estréia de minha peça Vestido de noiva em Paris. Nafrisa oficial, estaria De Gaulle, com todas as medalhas escorrendo,em ouro, pelo peito. E, ao abaixar o pano, o Herói, de pé, pedindo bis, como na ópera. 

Chego ao telefone. Digo: — "Pronto, pronto!". E ouço o benditosotaque. Era o homem. Na minha dispnéia emocional, estou dizendo:— "Pois não, pois não!". E fiquei ouvindo o enviado do Paris-Match.Logo nas primeiras palavras, o colega esvaziou-me de toda a maniade grandeza. Não estava interessado em mim, nem em meus textos,nem nas minhas metáforas. Vinha falar do Britto. Queriainformações urgentes sobre o Britto.

 A princípio, não liguei o nome à pessoa. Britto? Que Britto? Osotaque falou no Jornal do Brasil (sempre este órgão fatal). Só entãofez-se luz em mim. Já que o autor era outro, e não eu, comecei acharexecrável o sotaque. Eis o fato: — chegara ao Velho Mundo a notíciade que o Britto, através do Jornal do Brasil, declarara guerra demorte às cores. Era um desafeto das cores e um fanático do preto-ebranco. Não podia passar por uma porta de tinturaria sem náuseasprofundíssimas. 

Comecei a ver, ali, um mistério, um suspense. Que dizer doBritto? Achei a seguinte solução: — ia reunir uns dados e, emseguida, escreveria uma crônica sobre a vida e a personalidade donosso patrício. Estou falando, aqui, no momento, para o Paris-Match.

Quem é o Britto? Geralmente, cada qual é um só. Buda foiBuda, exclusivamente Buda e tão-somente Buda, do berço aotúmulo. E assim Maomé, e assim são João Batista, e assim Nero ouStalin. No presente caso, temos três Brittos num só: — o do Jornaldo Brasil; o futuro ministro das Relações Exteriores; e o beque doVasco. Há um quarto: — o Britto doutor, único doutor da imprensabrasileira. Portanto, os três são quatro. 

Quando começou a sua projeção internacional? Vejamos.Domingo passado, a TV Globo iniciou, no Brasil, a época da televisãoem cores. Se perguntarmos a um paralelepípedo analfabeto, ou auma cabra vadia, ou a um bode de charrete se a televisão em cores éum passo maravilhoso, a resposta será unânime e taxativa: — "Está na cara!". Não pensa assim o beque do Vasco. Ao saber da novidade,convocou uma reunião de editorialistas. 

Como se sabe, o Jornal do Brasil não diz um "oba" sem umaassembléia prévia e douta. Sob a presidência do dr. Britto, asmaiores cabeças da casa discutem o "oba", em toda a suacomplexidade. Se aquelas inteligências preferem o "oba", o Jornal doBrasil, no dia seguinte, diz o "oba" em vibrante editorial. Pois bem.Também a televisão em cores mereceu essa grave, erudita,clarividente reunião. 

Parecia uma sessão histórica da Câmara dos Comuns. Porvezes, os debates se acaloraram. Mas, mesmo no fogo dacontrovérsia, todos conservavam um tom dignamente crespo. Oprimeiro a falar foi o dr. Britto. Pedia licença para referir um fato,dos mais desprimorosos. E contou. Dias antes, vinha ele passandopela Avenida quando viu, na esquina, três cores: — o verde, o grená,o branco. Por se tratar de cores conhecidas, ele resolveucumprimentá-las. Agora vem o horror: — as três cores viraram-lhe orosto. 

Ante esse ultraje direto e crudelíssimo, o dr. Britto voltou atráse perguntou-lhes: —"Vocês não me cumprimentam?". Resposta: —"Nós somos Fluminense. E você Vasco". E o dr. Britto, que já nãogostava do amarelo, tinha agora razões de honra para abominar overde, o grená e o branco. Na cabeceira da mesa, em pé, de frontealçada, bradou: — "Ao Fluminense, nem água!". Os taquígrafos, deorelhas ávidas, não perdiam uma palavra. 

Imediatamente, fez-se uma comissão de estilistas (os mais finosda folha de pagamento) para redigir uma nota feroz que desagravasseo chefe. Lá estava o dr. Britto, com os brios mais eriçados do que ascerdas bravas do javali. E a página foi feita e, no dia seguinte,publicada, num luminoso "Informe JB". É um primor ou, comodiziam as velhas gerações, uma tetéia. Nada de cores. Se o poente doLeblon não é em preto-e-branco, azar da paisagem e abaixo o poente. A nossa baía é metida a azul. Pau nela!

 Portanto, a televisão em cores deve ser varrida a patadas. E o"Informe JB" chega ao sublime quando malha a miséria colorida. Ocerto, o correto, o patriótico é a miséria em preto-e-branco, é amortalidade infantil em preto-e-branco, é o subdesenvolvimento empreto-e-branco. Alguns realistas, que sempre os há, poderão dizerque a ira do Jornal do Brasil tem razões sordidamente competitivas.Quem ruge contra a televisão em cores é o jornal que não tem atelevisão, nem as cores. Seja como for, o velho órgão esta ventandofogo por todas as narinas. 

Assim é o homem. Mas justiça se lhe faça: — aos poucos, etapaa etapa, vai conseguindo tudo o que quer. Dirá alguém que nuncapassará de "futuro" ministro do Exterior. Não importa: — é um título.E os contínuos já o chamam de "ministro", "sr. ministro" e, até, "dr.ministro". Faltava-lhe a consagração do escrete. São Januário erapouco para a sua fome. É agora zagueiro da seleção. E se o ParisMatch dedicar ao nosso patrício as mesmas sete páginas que concedea De Gaulle e ao busto de Elizabeth Taylor — não faz mais que aobrigação.

 [9/8/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora