MADRUGADA DE 13 DE JANEIRO

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Vou ver o Juarez, no Banco Nacional de Minas Gerais, ali naesquina de Ouvidor com Avenida. Tomo o elevador, salto nasobreloja. E, no corredor, sou recebido com uma saraivada de versos.Um funcionário ergue o gesto e declama: — "Madrugada de 13 dejaneiro/ Rezo chorando o ofício da agonia" etc. etc. Perfilo-me comose aquilo fosse, não um soneto, mas o próprio Hino Nacional. Econtinua o rapaz, trêmulo de beleza: — "Sem um gemido assim comoum cordeiro". 

E, de repente, instalou-se, naquela sobreloja, o clima deAugusto dos Anjos. Sua tuberculose tossia para mim. O poeta falavada morte do próprio pai. Saíra para o jardim, ou quintal, e achou emtudo "o mesmo abismo de beleza". Depois, pareceu-lhe ver, "comoElias no carro azul de glórias", a alma do pai subir aos céus. Amém. 

Quem acabava de declamar era o funcionário da portaria,Francisco Hilton Batista. Sempre que vou ao banco, ele me dispara,à queima-roupa, um soneto. De Bilac, Raimundo ou Augusto. Desteúltimo, prefere a morte do pai, que começa forte e crispada: —"Madrugada de 13 de janeiro" etc. etc. E a data, atirada na cara doouvinte, tem um patético insuspeitado e fremente.  

Entro para falar com o Juarez. Sou um brasileiro que paga,não as dívidas, mas os juros. E estou tratando justamente de jurosquando entra o Batista. Vem com a bandeja e dois cafezinhos. (Eisum dos mistérios do nosso caráter: — não há brasileiro, vivo oumorto, que goste de café; e todos o tomam.) Depois de acertar ascontas com o Juarez, saio. Paro um momento junto ao Batista. Põese de pé e começa: — "Ainda hoje o livro do passado abrindo, lembrome e punge-me a lembrança delas". Era o Bilac.

 O rapaz termina o soneto; digo-lhe: — "Deus te abençoe". Esaio para a Avenida. Pensava no velho Brasil. Houve, sim, o Brasil dosoneto. Do soneto e também do fraque e do espartilho. Era o tempoem que o nosso Afrânio Peixoto chamava Baudelaire de torpe realista.Eis a verdade: — o fraque, o espartilho e o soneto influíam em nossosusos, costumes, maneiras, valores e pudores. O fraque predispunhaà ênfase generosa; o espartilho disciplinava as ânsias femininas; equantas se casavam por um soneto, ou traíam por um soneto?Enfim, o brasileiro estava sempre a um milímetro do patético e dosublime. 

E há o caso daquela bela senhora que amou o amigo domarido. Foi uma dessas paixões de ópera, de novela ou, ainda, desoneto. Combinaram dia, hora e endereço do pecado. Mas ela diziaque ia e, ao mesmo tempo, insinuava um escrúpulo. Confessava: —"Sou muito medrosa". E ele, arquejante de paixão: — "Ou você nãogosta de mim?". Ela suspira: — "Gosto. Amo". Mas tinha medo, nãodo marido, não do pai, não da sociedade. Pausa e novo suspiro: —tinha medo do filho. 

Desta vez, o bem-amado perdeu a paciência: — "Medo de umfedelho de três anos?". A Ana Karenina soluçou: — "Se eu for, nuncamais beijarei meu filho!". O garotinho era o seu Juízo Final. Mas eletantas fez que ela prometeu: — "Está bem. Vou". Ele jurara que ofilho não saberia nunca. Até que chegou a data do pecado. Navéspera, ela deixara o garoto, o Juízo Final, na casa da avó. E jáacordou suspirando. Era a belle époque e nunca a brasileira suspiroutanto como na belle époque. Enquanto o marido tomava café, ela,cheia de papelotes na cabeça (era o Brasil do papelote), imaginava: —"Não sabe!". O desgraçado passava manteiga no pão. E, ao mastigar,a manteiga vinha de volta, como uma baba amarela. Ela, varada deremorsos, dizia-lhe: — "Limpa aqui, meu bem!". Arquejante deapetite, o outro limpava-se na própria toalha ou na fralda da camisa.(Como se vê, estou exagerando.)

 Mas não é nada disso que eu queria dizer. O que eu queriadizer é que o marido foi trabalhar e ela ficou sozinha, com seupecado. Coincidiu que fazia um calor de rachar catedrais. E faltouágua. Ou por outra: — o problema não foi a falta da água. Issomesmo, não foi a falta da água. Olhava o relógio, numa espécie deterror. Devia estar lá às três e era meio-dia. Portanto, daí a trêshoras, ela estaria batendo na porta. Tomou banho. Mas, quandoolhou o espartilho, pensou que teria de vesti-lo, de tirá-lo, de vestir etirar. Começou a sentir um cansaço, um tédio, uma irritação contrao espartilho. E, depois, não era apenas o espartilho, mas o seramado; e, pouco a pouco, vinha o tédio do próprio pecado. Pôs-sediante do espelho. Percebia, olhando a própria imagem, que o desejoé triste, que o desejo é vil.

 Às três horas estava em casa, ainda em casa e para sempre emcasa. E foi a preguiça de pôr o espartilho, a preguiça de tirar oespartilho, que a salvou. Dirá alguém que influíram outros fatoressecundários, como, por exemplo, o calor. Vá lá o calor. Mas foi oespartilho que começou todo um processo de angústia sufocante. Nodia seguinte, ela passa no armarinho; lá comprou um carretel.Voltava, quando viu o ser amado, na esquina. Abordou-a,impulsivamente. Disse-lhe, baixo e violento: — "O que você fez não sefaz. 

Esperei quatro horas. Está pensando que sou seu moleque?". Elanão teve medo: — "Não fale assim comigo. Nunca lhe dei essaconfiança". O sujeito recuou como um agredido: — "Nunca me deuessa confiança? Escuta. Não combinamos? Hem? Não combinamos?Fala!". E ela: — "Eu sou uma senhora casada! O senhor não sabecom quem está falando!". Ele balbuciou: — "Está tudo acabado?".Ela disse as últimas: — "Acabado o quê? Não houve nada. O senhornão se enxerga! Quer deixar eu passar? Quer?". O outro, branco,afastou-se, para dar-lhe passagem. 

De noite, quando o marido chegou, ela o recebeu aos soluços:— "Fui insultada!". Contou-lhe: — "Aquele canalha fez propostas!". O marido ouvia só, atônito. Foi apanhar o chapéu; disse: — "Volto já".E saiu. Andando, na calçada, de fraque, parecia um estadista. Ofraque, repito, dava mais ferocidade à sua honra conjugai. Foiencontrar o amigo, se não me engano, no Café Papagaio (exatamente,no Café Papagaio). O outro tomava cerveja, sozinho. O maridoaproxima-se e diz: — "Seu cachorro!". Puxa o revólver e o fuzila. Osedutor (como então se dizia) nem se levantou. Morreu sentado. Se oofendido não estivesse de fraque, talvez lhe tivesse apenas quebradoa cara. Quem sabe?

 Aí está: — o espartilho frustrou um adultério e o fraque matouum homem. E há também o episódio do soneto. Foi o caso de umanoiva na véspera do casamento. De tardinha (era como se dizia: —"de tardinha") recebeu um envelope. Virou, revirou e abriu. Era umsoneto e, por baixo, a assinatura do ex-namorado, por sinal, oprimeiro de sua vida. Leu a primeira vez. E, depois, foi-se trancar nobanheiro para reler dez, vinte, trinta vezes. De vez em quando, vinhaalguém bater na porta: — "Está aí, Fulana?". Estava. E a pessoa iadizer na sala que a noiva não saía do banheiro.

 A mãe explicava: —"Nervosa". Até que, de repente, a rua ouviu aqueles gritos. Todoscorreram. A noiva embebera o vestido em álcool, ou querosene. Eriscara um fósforo. Depois correu, dentro de casa, gritando,incendiada. Só muito tarde alguém se lembrou de abraçá-la com umcobertor.

 Levaram a moça para a cama, enquanto chamavam a assistência. E, de repente, uma tia notou que algo se derretia, atravessavao colchão e vinha pingar no soalho. Era a banha que escorria. Avelha foi apanhar uma bacia e a pôs debaixo da cama. Quando aassistência apareceu, estava morta. E, por algum tempo, ouviu-se opingo tinir na bacia. Só depois se falou no soneto. (Já usei a mesmatia, o mesmo colchão, a mesma bacia, o mesmo pingo, em crônicaanterior. Desculpem.)

 [17/8/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora