Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se meentendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde ostreze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depoisde 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nadainferior às obras completas de William Shakespeare.
Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para aplatéia: — "Eu vi tudo e sei tudo". Não vejam imodéstia nas minhaspalavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá amesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é nosso, masestritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística,posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que aentrevista verdadeira.
Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se nãome engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da ImprensaNacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suasfunções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de ternoe de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nemimporta o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um canofurado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco.O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente.
E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa daMoeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me noseu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse umBismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se asua palavra fosse o próprio Hino Nacional.
Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de algunsanos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia serentrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreume a idéia das "entrevistas imaginárias". Aí estava a única maneirade arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre,ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto.
Fascinou-me a "entrevista imaginária". Precisava, porém,arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem umasala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, nomáximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabranão trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendoinconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite,hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, oufaz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, paramorrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.
Fiz "entrevistas imaginárias" com jogadores, dirigentes defutebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meuconvidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura,quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. "Mas quem?" — eis oque me perguntava. — "Quem?" E, súbito, um nome ilumina minhastrevas interiores: — "D. Hélder!". De todos os vivos ou mortos doBrasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais,uma batina é sempre paisagística.
Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a "entrevistaimaginária". À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estavatambém a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo apaisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeirapergunta: — "O senhor fuma, d. Hélder?". Resposta: — "A entrevistaé imaginária?". Acho graça: — "Ou o senhor duvida?". E d. Hélder: —"Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?". Digo: — "CaporalAmarelinho". Cuspiu por cima do ombro: — "Deus me livre! Matarato!".
Faço a pergunta: — "Que notícias o senhor me dá da vidaeterna?". Riu: — "Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi.Está-me achando com cara de vida eterna?". No meu espanto,indago: — "E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?". Oarcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — "Nem o Alceuacredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta".
Ele continuava: — "O Alceu acha graça na vida eterna. A vidaeterna nunca encheu a barriga de ninguém". D. Hélder falava e eu iataquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha aver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E dissemais: — "Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outrosbichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E afome do Nordeste?".
Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — "Afome do Nordeste é a fome do Nordeste". D. Hélder estende a mão: —"Dá um dos teus mata-ratos". Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder nãopára mais: — "Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu umsanto, uma santa? Por exemplo: — Joana D'Arc. Já viu a nossaquerida Joana D'Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a umacriança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal desão Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!".
Lanço outra isca: — "É verdade que o senhor vai para oAmazonas?". Riu: — "Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nuncadesconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E oAmazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?". Concordo emque ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago:— "E o comunismo?".
D. Hélder conta: — "Quando estive nos Estados Unidos, boleium cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho,eu!". Insinuei a dúvida: — "Mas esse negócio de comunismo é meioperigoso". Nova risada: — "Perigosa é a direita. A direita é que não dámais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos".
Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — "Sou homem daminha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, doSobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época temseus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. OCharleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falemda vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiroespartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais BenjamimCostallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo éGuevara. E acompanho a moda".
Desfechei-lhe a pergunta final: — "E a Presidência daRepública?". D. Hélder respira fundo: — "Depende. A fome doNordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil,muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá". Era o fim da "entrevistaimaginária". Despedi-me assim: — "Até logo, presidente". Respondeu:— "Obrigado, irmão". E antes de partir fez a última declaração: —"Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor debarriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que naressurreição de Lázaro". Disse isso e sumiu na treva.
[14/3/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...