O brasileiro é o aniversariante nato. Nenhum outro povo fazanos com tão larga e cálida efusão. Bem me lembro da minhainiciação jornalística. Bela época em que o dono de jornal era doutor,para todos os efeitos. (Hoje, o último "doutor" da imprensa é o Britto,do Jornal do Brasil.) Depois de 30, fui trabalhar em O Tempo.De 30 para trás, cada jornal novo chamava-se O Tempo. E essetítulo obsessivo foi o túmulo de não sei quantos matutinos,vespertinos, semanários, mensários etc. etc. Eis o que eu queriacontar: — o diretor era, se assim posso dizer, um aniversariantevocacional. Fazia anos de mês em mês. Os redatores promoviam umavaquinha para o presente; havia discursos; e, depois, tínhamos umamesa de mãe-benta, queijadinha, empada, pastel etc. etc.Fiz a introdução acima para chegar ao José Lino Grünewald(belo nome para um jovem oficial afogado no afundamento doBismarck). Somos amigos, amicíssimos, mas vejam vocês: — adespeito da nossa intimidade, só consigo chamá-lo, por extenso,como num cartão de visitas, de José Lino Grünewald. Eu diria aindaque ele é neopagão, poeta concreto, amigo de Ezra Pound.Todos os dias, antes de sair de casa, o José Lino Grünewald vaiao guarda-roupa e apanha uma pose. Não uma pose qualquer,intranscendente. O neopagão não se pode comportar como um vago econvencional pai de família. A pose que ele veste, calça e abotoa é ade um cínico, de um amoral, de um perverso. Por outro lado, a somados dados já referidos — neopagão, poeta concreto e amigo de EzraPound — sugere não sei que abjeções inenarráveis.Sem nada dizer, para não o humilhar, a verdade é que sempre o julguei um puro. Lembro-me de que, certa vez, chamei um amigocomum, o Francisco Pedro do Coutto, e disse-lhe: — "Quando vejo oJosé Lino Grünewald, tenho vontade de oferecer-lhe alpiste na mão".E, com isso, queria dizer que o nosso Grünewald (belo nome naval) éum terno, um manso, portador de não sei quantas virtudesexemplares.O Francisco Pedro do Coutto ouviu-me e concordou com a idéiado alpiste manual. Mas o que faltava, a mim e ao Coutto, era aevidência das virtudes que atribuíamos ao amigo. Em suma: —precisávamos de um fato sólido, de uma atitude concreta. E, derepente, tudo aconteceu. Imaginem vocês que almoçamos, ontem noNino, eu, o José Lino Grünewald, o Francisco Pedro do Coutto, oMarcello Soares de Moura e o "Marinheiro Sueco".E o que notei, ao primeiro olhar, foi a luminosidadeescandalosa de José Lino Grünewald. Se ele falava, sentia-se nassuas palavras como que um halo intenso. Seu olhar vazava luz. Eis apergunta que nos fazíamos, sem lhe achar resposta: — que teriaacontecido? Ninguém sabia, só Deus. Era um neopagão e, pois, umsujeito sem nenhum compromisso com a melancolia. Mas, certa vez,entrei no Correio da Manhã e o surpreendi arriado numa cadeira.Vendo-o pingar tristeza, fui perguntar-lhe: — "Mas que tristeza éessa?". Reagiu: — "Eu sou um dionisíaco". E não teve nem forçaspara acrescentar à sua tirada um necessário ponto de exclamação.Citei o episódio para concluir: José Lino Grünewald é sujeito a cavasdepressões como qualquer cristão.E, no almoço, sua presença foi uma festa irresistível. Até que,de repente, anuncia: — "Vou fazer anos dia 13". Nenhumcomentário. Deixa passar alguns minutos e insiste: — "Vou fazeranos dia 13". E nos olhava, aflito, na esperança da reação, quetardava. Berrei então com vários dias de antecedência: — "Gentilaniversariante!". Ele, transfigurado, repetia: — "Pois é. Dia 13, dia13". Juntou o dado histórico: — "Nasci numa sexta-feira 13". Percebi tudo. Diante de nós, estava o brasileiro. Não mais oamigo de Ezra Pound, não mais o poeta concreto, não mais oneopagão. Num único lance, extrovertera toda uma inconfessaverdade interior, toda uma verdade negada. Ali estava o anticínico, oantiamoral, o antiperverso. Era apenas o aniversariante. E, no Brasil,um aniversário jamais é intranscendente. Estamos longe do dia 13.Pois o José Lino Grünewald, com uma semana de antecedência,anda por aí, trêmulo de felicidade; e já providenciando ossalgadinhos, as mães-bentas, os guaranás.Ai de nós, ai de nós. Somos 80 milhões de aniversariantes e,repito, 80 milhões com alma de aniversariantes. Passo agora a outroassunto. Se a emotividade do nosso Grünewald é tão autêntica, tãobrasileira, não posso dizer o mesmo dos rapazes da Escola de BelasArtes (não falo de todos, mas de um grupo). Vocês conhecem o caso.Dias atrás, a cidade esbugalhou-se lendo no jornal o seguinte:— rapazes de belas-artes iam queimar, em praça pública, poemas deamor. Ora, o estudante brasileiro nunca foi "isso". De mais a mais, asolenidade projetada era uma cínica imitação nazista. A Alemanha deHitler queimava livros; aqui, ia-se tocar fogo em poemas de amor eporque eram de amor.No fim, os rapazes nem coragem tiveram de queimar.Simplesmente, rasgaram os poemas. Alguém dirá que os jovenstinham a atenuante da burrice. Não, não. A burrice que assassinalivros não tem perdão. O melhor que se poderia talvez dizer é que osestudantes tinham a coragem cínica e suicida de afrontar toda umacidade, toda uma população.E, no entanto, vejam vocês: — os culpados distribuem agorauma circular em que gaguejam explicações e só faltam dizer: — "Nósnão tivemos a menor intenção etc. etc.". Pior do que a atitude foi aexplicação. Estarei disposto a admitir um canalha que trepe numamesa e anuncie: — "Meus senhores e minhas senhoras, eu sou umcanalha". Um canalha assim translúcido e assim confesso estaria salvo. O pior do canalha é que se quer passar por gentil-homem.Goebbels, quando viu seu mundo perdido, matou a mulher, seisfilhos e se matou. Não estava brincando.Eu aceitaria os tais rapazes de Belas-Artes se, ao menos,tivessem a coragem, a consciência, a fúria do próprio gesto. Sequeriam queimar poemas, por que não o fizeram? À última hora,resolveram apenas rasgar. Já essa concessão foi uma vergonha.Muito bem: — rasgaram. E só porque os jornais meteram o pau,soltam uma circular deprimente. Pareciam uns bárbaros, unspossessos, e me saem uns parnasianos.Eis o que eu desejaria notar: — o que se procura no bem e nomal é a autenticidade. O José Lino Grünewald vai fazer anos dia 13.Como um brasileiro puro, está numa alegria honrada e profunda.Como já disse, todos nós somos, acima de tudo, aniversariantes.José Lino Grünewald não trapaceia. E os jovens de belas-artes fazemtrapaça. À primeira resistência, caem num pânico profundo. Com umpouquinho mais de pressão, acabam recitando o nosso J. G. deAraújo Jorge, com um piano ao fundo, tocando a Dalila.
[8/2/1968]
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A Cabra Vadia
DiversosNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...