Todo mundo já ganhou o prêmio Nobel, menos o brasileiro. Nãome venham falar em subdesenvolvimento. O Chile e a Nicarágua sãomais subdesenvolvidos do que o Brasil. E ambos têm o seu prêmioNobel. Há quem diga: — "A Nicarágua não existe". Sei lá. Mas, existaou não, eis a verdade: — existe para a Academia Sueca. O Brasil,não. E nem importa a nossa tremenda extensão territorial. Este paísé uma espécie de elefante geográfico. Mas a Academia Sueca olhapara cá e não vê ninguém.
Portanto, existimos menos do que a Nicarágua. Mas é umainjustiça. Temos uma massa de intelectuais. Numericamente, nãoestamos atrás de ninguém, nem da União Soviética. Na Rússia há,registrados, seis mil e tantos escritores (e o sujeito que não foiregistrado não é escritor. Mesmo que tenha escrito A divina comédia,não é escritor).
Pode parecer que, numericamente, a União Soviética está nafrente do Estados Unidos. Dos Estados Unidos, talvez. Do Brasil,não. Vocês se lembram da última passeata. Antes do desfile, fui ver aconcentração. Levei comigo o Raul Brandão, pintor de grã-finas eigrejas. E espiamos o espaço reservado aos intelectuais. Parecia umamassa de Fla-Flu. Jamais nos ocorrera que a inteligência brasileirafosse tão abundante. No seu horror, o Raul Brandão perguntava: —"Tudo isso é intelectual?".
Fomos olhar outra vez a tabuleta. Lá estava escrito, acima dequalquer dúvida ou sofisma: — "Intelectuais". Portanto, osintelectuais eram intelectuais. E, então, passo a passo, tratamos deidentificar os nossos poetas, os nossos romancistas, os nossos ensaístas, os nossos dramaturgos, os nossos sociólogos, os nossosprofessores. Eis a lamentável e quase grotesca verdade: — depois debuscas ingentes, não identificamos ninguém. Ninguém? Isso mesmo:— ninguém. No meio de 20 mil sujeitos, não havia uma caraconhecida.
De repente, o Raul Brandão crispa a mão no meu braço;sussurra: — "Acho que vi a Nara Leão!". O "acho" insinuava umadúvida. A Nara Leão pode não ser a Nara Leão. Talvez parecida e nãoa própria. Pergunto: — "Cadê?". O Raul Brandão procura, procura, etem de admitir: — "Sumiu". E, então, começamos a reexaminar ascaras.
(Quem devia estar ali era a Academia Sueca, apalpando,farejando, a literatura brasileira.) Se pose é um dado válido, todomundo ali era Proust, era Joyce, era Balzac, era Cervantes. Unsficavam de perfil, outros de frente, outros de três quartos, outrospunham as mãos nas cadeiras. Atrás de mim, o Raul Brandão gemia:— "Como são inteligentes!". Eram, sim, inteligentíssimos.
Os idiotas da objetividade poderão insinuar que são autoressem um livro, poetas sem uma quadrinha de são João, ensaístas quenão lêem, não escrevem, nem pensam. Não importa. A abundâncianumérica os salva. Enquanto a União Soviética só consegue juntarescassamente 6 mil escritores, o Brasil pode retrucar com 20 mil.Dirá alguém que toda a literatura soviética atual não merece amarraros sapatos de Dostoievski. Como não sou crítico literário, deixo deopinar. Mas continua de pé a pergunta humilhante: — por que, comtantos autores, o Brasil jamais foi contemplado com um prêmioNobel?
Não obstante o subdesenvolvimento, que explica tudo, temoscampeões mundiais no futebol, no basquete, no hipismo, no tênis,na pesca submarina, no iatismo. Nas exposições de gado, temosvacas premiadas. As nossas caixas de fósforos ganham medalhas. Sehouver um campeonato de cuspe à distância, um moleque nosso há de vencê-lo. Ainda na semana passada, o nosso Botafogo, com trêsenxertos, goleou de 4 x 1 a grande seleção argentina. Vitória com olé.Fizemos um gol, o último, de oitenta passes. Mas repito: — por queaté as vacas, até as caixas de fósforos brasileiras são premiadas, e osescritores, não?
Foi esta, mais ou menos, a pergunta que fiz a um amigo,justamente um dos idiotas da objetividade. Ele vira-se para mim epergunta: — "Ou não Percebeste que a literatura brasileira nãoescreve mais?". Tomo um susto: — "É literatura e não escreve?".Exatamente: — a literatura brasileira é literatura, mas não escreveuma linha, uma frase, um verso, nada. Há, por todo o Brasil, umensurdecedor silêncio literário.
Esbugalhado, perguntei: — "E que faz a literatura brasileira?".Retruca o idiota da objetividade: — "Faz passeatas". Todavia, nãoaceitei a morte literária do Brasil. Corri à Biblioteca Nacional. E tive acrudelíssima surpresa: — o nosso último suplemento literário fechouas portas na abertura dos portos. Volto ao idiota da objetividade;disse-lhe: — "Mas tínhamos um crítico, rapaz de talento, o ÁlvaroLins". E o outro: — "É anterior a José Veríssimo, Araripe Júnior,Sílvio Romero. Álvaro Lins é a nossa maior antigüidade crítica".
Posto diante da evidência objetiva e estarrecedora, acabei porme convencer. Quando se travou a primeira batalha do Marne, e ostáxis de Paris salvaram a França, que fazia, aqui, o José Veríssimo?Fazia crítica literária, indiferente ao mundo que morria, indiferenteao mundo que nascia. E, sem querer, falei num nobilíssimo gêneroliterário: — a crítica. No passado, um jornal podia abrir mão de tudo,menos do seu crítico. E quando aqui desembarcou d. João VI,enxotado por Napoleão, já encontrou o Álvaro Lins, no cais, à suaespera. El Rey perguntou, num gesto largo: — "Como vai o meu carorodapé?". E o rodapé, baixando a vista, escarlate de modéstia: —"Caprichando, majestade, caprichando!". Foi divino.
Mas tudo isso acontecia antes das passeatas. O último óbito literário, que se conhece, foi o suplemento concretista do Jornal doBrasil. Aí morreu a nossa literatura. O leitor, que é de uma inocênciaobtusa, há de perguntar: — e por quê? Resposta: — Morreu porquese politizou. Veio o Vietnã. E, por último, explodiram as passeatas.Assim como há o padre de passeata, há o escritor de passeata. Sãoos tais estilistas sem uma frase, os tais poetas sem uma metáforaetc. etc. E, súbito, os nossos cafés, bares e boates se povoaram dedefuntos literários. Outro dia, no Antonio's, vi um tão defunto queusava algodão nas narinas. Orai por ele.
Temos, ainda, a grã-fina de passeata. No seu guarda-vestidoshá 1500 decotes. Já quando houve, na França, a jovem revolução, omarido da grã-fina sentiu-se ameaçado como se fosse o próprio DeGaulle. E, de repente, começa aqui a imitação francesa. Até que umdia a grã-fina diz que vai à passeata. O marido perdeu a esportiva: —"Está maluca? Bebeu?". A mulher, que só fazia massagem com umcopo de cerveja na mesinha, reagiu como "La Pasionaria": — "Eu nãosou reaça como você!". O marido tratou de provar-lhe, didaticamente,que a passeata era contra os 1500 decotes. Ela não se convencia,nem a tiro; e, por fim, o marido propôs: — "Vou lá espiar e depois tedigo". Assim se fez. O homem viu e, inclusive, participou da marchaaté a Candelária. Não descobriu um preto, um operário, um saláriomínimo, mas viu, em compensação, todas as grã-finas da cidade.
Voltou convencido de que eram as classes dominantes quedesfilavam, sob a chuva de listas telefônicas. Disse à mulher: —"Pode ir à próxima". Os 1500 decotes estavam salvos.
[13/8/1968]
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...