Uma coluna diária precisa ter um elenco variadíssimo. Sim, umelenco colorido de mágicos, trapezistas, clowns, arquitetos, cineastas, heróis,estudantes, intelectuais e pulhas. Quando o colunista precisa de um mímico, temo mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se é o intelectual, há o intelectual.
Fiz esta breve introdução para concluir: — as minhas confissões vivem de umelenco assim. Meus protagonistas e meus comparsas dariam para lotar umaplatéia de Fla-Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é exatamente o"defunto vocacional".
Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o leitor há de perguntar: —"Por que defunto e por que vocacional?". Tentarei explicar.Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou por mim e acenou-mecom os dedos: — "Salve!". Balbuciei, lívido: — "Salve". E fiquei olhando o outroafastar-se e sumir na multidão. Mas por que o meu espanto e por que o meuhorror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e florira umas cinco vezes.
Dirá alguém: — "Ilusão". Seja ilusão. Mas o "defunto vocacional" cumprimenta como os outros, e calça como os outros, e tem gravata como osoutros. E dá sempre a sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nasnarinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim uma máscara da cor decertas pinceladas amarelas de Van Gogh.
Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei. Imaginem vocês que recebium telefonema fantástico. Era alguém que desejava de mim uma entrevistaimaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era uma voz fininha decriança que baixa em centro espírita. Fiz-lhe a pergunta assustada: — "O senhortem mesmo essa voz?". Jurou que tinha. E eu: — "Mas quem é o senhor?". Veio aresposta terrível: — "Sou o homem de bem".
Ora, eu estava certo de que o homem de bem era, precisamente, "O GrandeDefunto". Ninguém tão morto e ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missamandada rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que alguém saísseda tumba e pedisse uma entrevista imaginária. Seriam ambos imaginários: — aentrevista e o homem de bem.
Tive de usar de franqueza: — "Meu amigo, vai-me desculpar, mas o senhorjá morreu". Há uma pausa lúgubre. E, depois do suspense, diz o homem de bem:— "Obrigado pela informação". E desligou. Viro-me para os colegas e, puxandoum cigarro, digo-lhes: — "O homem de bem é um cadáver mal-informado. Nãosabe que morreu".
Volto para a minha mesa. Bate novamente o telefone. Aviso: — "Se for ohomem de bem, não estou". Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta:— "Quem quer falar com ele?". Pausa. O contínuo repete: — "Quem? Ocanalha?". Alguém que se dizia "o canalha" queria falar comigo. Levanto e vouatender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse eusolicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha. Do outrolado da linha, diz alguém: — "Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar umaentrevista imaginária. Pode ser?". Fiz-lhe a primeira pergunta: — "Quem é osenhor?". E o outro, com a voz de quem está mascando chicletes: — "Já disse.Sou o canalha".
Tive de explicar-lhe: — "Meu amigo, já temos um canalha oficial. Nuncaouviu falar no Palhares, o que não respeita nem as cunhadas?". Respondeu, comradiante vaidade: — "Sou muito pior do que o Palhares". Era uma bravata óbvia.Digo: — "Escuta. O Palhares beijou a cunhada no corredor. E o senhor? Vamoslá. Qual foi a sua ignomínia?". O outro dá uma risadinha de Chaliapine emMefistófeles: — "Só responderei no terreno baldio". Faço uma pausa. Estouachando a voz muito moça. Pergunto: — "Afinal, que idade tem o senhor?". Eis aresposta: — "Dezessete anos".
Ao ouvir falar em "dezessete" tremo em cima dos sapatos. Faço-lhereverências de Michel Zevaco: — "Peço-lhe mil desculpas. Eu não sabia que osenhor era o jovem. Pode vir. O terreno baldio jamais fechará suas portas para ojovem". Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias devem começar à meianoite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O jovem foi sarcástico: —"Ameia-noite é uma ilusão". Seja como for, foi magnânimo; e aceitou otenebroso horário. Assim me despedi: — "Salve, jovem canalha!".
Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno baldio: — "Sou eu.Manda providenciar papel picado e listas telefônicas. Vamos receber a maisilustre visita de toda a história do terreno baldio".
Pergunta, pálido, o contra-regra: — "Quem?". Imaginou, por certo, que seriaum rajá montado num elefante. Disse-lhe: — "O jovem canalha!". Era honrademais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia emocional, quase desfaleceuno telefone: — "Não merecemos tanto". Trato de instigá-lo: — "Capricha,capricha!". Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo apanho o primeiro táxi.Arquejo: — "Me leva no terreno baldio. Chispa".
Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas, os caramujos estãoassanhadíssimos: — "Cadê o jovem canalha?". Tenho que pedir calma. Chamo aspulgas: — "Modos, hem, modos".
Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias, um burro, pensativo,pastava. E, súbito, a cabra põe a boca no mundo: — "Evém o jovem canalha!".Era a pura verdade. Vinha ele e com as costeletas ao vento. Mas não vinha só.Uma massa o seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro: — "Já ganhou!Já ganhou!". De um lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro ladovinha d. Hélder. E ambos abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foisublime quando o patife entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr.Alceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem pisar. Do alto, choviamlistas telefônicas e papel picado.
Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-decerimônias anunciou os títulosdo entrevistado: — "É estudante, mas não sabe nada, porque onde se viuestudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete". Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceucomeça a gritar: — "Tem a razão da idade!". Amassa coral de gafanhotos, sapos,pulgas, camaleões, pôs-se a repetir: — "Tem a razão da idade! Tem a razão daidade!". E, súbito, fez-se o maior silêncio da terra. O "jovem canalha", de vivavoz, ia contar o feito que estava justificando aquela apoteose. Com radiantemodéstia, disse tudo: — "Não fiz nada demais. Estão exagerando. Simplesmente,havia uma menina reacionária. Tão reacionária e obscurantista que namorava demãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina. Batemos no namorado".Pausa, suspense. E, então, limpando as unhas com um pau de fósforo, concluiu:— "Eu sou um co-autor do jovem estupro".
Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi carregado na bandeja, e demaçã na boca, como um leitão assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfalvolta olímpica.
[21/9/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...