Há tempos, contei o caso do ministro que foi, pela primeira vez,à televisão. A família tremeu em cima dos sapatos. E não sei se aprópria mulher, uma tia, ou uma cunhada, deu a sugestãoespavorida: — "Toma banho! Toma banho!". E porque não lheocorrera a idéia do banho, o ministro julgou-se um vencido.Imediatamente, a esposa se arremessou. Podia ser banho dechuveiro. Mas, como ele ia falar na TV, a santa senhora achou quedevia ser banho de imersão.
Encheu a banheira. Temperou a água. E o banho ministerial foidigno de Paulina Bonaparte. Do lado de fora, a mulher comandava:— "Esfrega bem! Esfrega bem!". Uma tia cochichou: — "Debaixo dobraço!". E a mulher mais alto: — "Debaixo do braço, ouviu?". Súbito,alguém veio dizer à esposa: — "Homem não sabe tomar banho. Nãose limpa direito". Vozes a instigavam: — "Vai lá! Vai lá!". E ela foi.Quando s. exa. saiu, era o membro mais limpo do governo.
E, assim, esfregado pela própria mulher e mais perfumado doque uma noiva, lá se foi o ministro. Ele, só, não. Levava umacompanhamento estarrecedor. Parecia uma passeata de parentes.Havia, na família, uma solteirona de García Lorca. Chamada, nãoqueria ir. Quase a laçaram; e a velha estrábica (era estrábica) teveque se incorporar à massa familiar.
O ministro entrou na estação em ânsias, palpitaçõessufocantes. Não acreditava em nada, era um ateu nato e hereditário.Todavia, na hora de ir para o ar, vira-se para a mulher: — "Reza pormim! Reza por mim!". E, com uma dispnéia pré-agônica,encaminhou-se para o abismo. Sim, a televisão era, para S. Exa., um abismo voraz e inédito. Na frente das câmaras e dos microfones,deixou de ser o poder, o governo, a autoridade. Era o contínuo de simesmo. Houve um momento em que, em pleno ar, teve sede.Apanhou o copo com as duas mãos. Mas parte da água voltava comouma baba.
Já não me lembro por que é que estou contando tudo isso. Ah,já sei, já sei. Eu queria demonstrar o óbvio, isto é, que a televisãofascina qualquer um. O sujeito pode ser rei, ou rainha, ou anjo, ousanto. Mas atravessa três desertos para entrar no programa doChacrinha, da Dercy ou da Bibi. Cabe então a pergunta: — e por queesse deslumbramento?
Vamos lá. Primeiro, porque, normalmente, cada um de nós éum ator sem platéia. Representamos, no máximo, para umanamorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos,meia dúzia de credores. E o sujeito que entra no Chacrinha sai de lácélebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulminante é amaior delícia terrena.
E quem fala para tantos pode, com uma frase, fundar umareligião, com outra frase derrubar um império, com uma terceirafrase decapitar várias marias antonietas. De mais a mais, a simplesimagem nos confere uma nova dimensão. Pois não há idiotas novídeo. Lembro-me de um outro ministro. Alguns espíritos,estreitamente positivos, afirmam que é débil mental de babar nagravata. Foi para a televisão e parecia um Disraeli. E De Gaulle, quefez De Gaulle, quando viu a França sob a brutal ocupação francesa?Correu à TV e anunciou: — "Eu sou a Revolução!".
Isso, dito cara a cara, e para meia dúzia, não convenceninguém. Mas uma platéia de 20 milhões não pensa. E não precisoupolícia, nem exército, nem bazuca. Uma frase bastou. Sem nenhumarepressão sangrenta, o único francês vivo liquidou o que ele própriochamou de "carnaval". Baixou sobre a França uma súbita quartafeira de Cinzas. O que restou de tudo foi a ressaca do caos ululante.
E se alguém disser na televisão que é Joana D'Arc, será JoanaD'Arc. Portanto, a França e colônias (se sobrou alguma colônia), todomundo acreditou que De Gaulle era a própria Revolução de esporas epenacho. Aqui mesmo tivemos o encontro de Carlos Lacerda e d.Hélder. Iam fazer um diálogo. Mas o diálogo foi monólogo. Só Lacerdafalou. O arcebispo disse um "oba" à entrada e um "até logo" à saída.Por que tal silêncio? Por dois motivos: — primeiro, porque d. Héldersó se interessa Por d. Hélder; segundo, porque é um arcebispo de TV,um santo de TV. Ele próprio o disse: — "Não sou um Guevara desalão". É um Guevara de TV. Carlos Lacerda era um único e escassoespectador. D. Hélder só falaria para milhões de carlos lacerdas.
Eis o problema: — ninguém quer mais posar para meia dúzia.O nosso gesto, a nossa ênfase, a nossa careta pedem a grandecomunicação, a formidável audiência. Aí está a minha CLASSE. Nopassado, era-se atriz, ator, diretor para uma platéia de poucos. Mashoje o palco passou a ser a pior forma de solidão. Diante dos 150gatos-pingados de cada sessão, a Duse ou o Zaconi sente-se umRobinson Crusoe sem radinho de pilha. Instalou-se em cada um denós, do teatro, a utopia das platéias fantásticas. Disse-me odramaturgo Plínio Marcos que queria representar e ser representadono ex-Maracanã, hoje Mario Filho, para uma platéia de Vasco xFlamengo, de Santos x Corinthians. Cada um de nós queria ser umSantos x Corinthians, um Vasco x Flamengo. Ou ainda: — qualquerum de nós gostaria de ser, na pior das hipóteses, uma preliminar deFla-Flu.
Foi a televisão, claro, que nos deu essa obsessão numérica dasgrandes massas. Volto ao teatro. Lembro-me de um ator que medizia, patético: — "Eu queria morrer no palco". Um outro, maisradical, além de querer morrer no palco, gostaria de ter nascido nopalco. E o palco seria, duplamente, berço e túmulo. Hoje, este últimogostaria de nascer e morrer na TV, para milhões. Por que todosgostamos de fazer passeata?
Pode parecer que temos altíssimas e sutilíssimas razõespolíticas, ideológicas, revolucionárias etc. etc. Na verdade, e atéprova em contrário, o que há é a vontade que cada qual tem deampliar a sua platéia. Reparem como tudo é pretexto para passeata.Há uma greve de veterinários? A CLASSE sai à rua. Mas como, se elanunca tratou de cachorro? Não importam os cães, sejam eles galgosou vira-latas. O que interessa é a conquista de uma nova eincalculável platéia. Outrora, as sacadas não iam ao teatro, osautomóveis não gostavam de teatro, os edifícios abominavam oteatro. E a passeata incorpora à sua platéia ideal milhares de carros,e prédios, e esquinas, e avenidas etc. etc. Dirá alguém que é umpúblico sem bilheteria. E pergunto: — e a vaidade? Hoje, há poetas,sociólogos, arquitetos, protéticos, cardiologistas que pagariam, dopróprio bolso, para entrar na passeata.
Eu disse "vaidade". Aí está a palavra que explica tudo. O quenos induz à passeata é, digamos, uma vaidade de leitão assado. Senão entenderam a metáfora, tentarei justificá-la. Imaginem um salãoimenso. Banquete. Quinhentas pessoas sentadas, entre casacas edecotes. E, lá do fundo, um garçom traz na bandeja um leitão.Levado na bandeja em desfile, o leitão há de sentir uma vaidadetotal. Assim também o artista, o literato, o cineasta ou o padre depasseata. O sujeito parece desfilar triunfalmente, numa bandejaimaginária, e de maçã na boca, como o leitão assado.
[6/8/1968]
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...