Não há brasileiro, vivo ou morto, que não tenha uma vizinhagorda e, além de gorda, patusca como uma viúva machadiana. Dirãoos idiotas da objetividade que vizinha é a que mora ao lado, oudefronte, ou ali na esquina ou, ainda, na mesma rua. O caso não meparece tão simples. O que eu chamo de vizinha é, antes de maisnada, um certo tipo físico, uma certa e generosa adiposidade. Diziame um amigo, a propósito de não sei de quem: — "Gorda como umavizinha". Aí está dito tudo. E se tiver varizes, melhor. Ah, esqueciame das brotoejas. É preciso que desponte, no seu decote, umaconstelação de brotoejas.
Assim é, fisicamente, a vizinha. Do ponto de vista de caráter,sentimentos e modos tem de ser patusca. Imaginem uma víboragaiata — é a vizinha, como a imaginava o nosso Machado de Assis.Se, por acaso, mora ao lado uma senhora esguia, de lindas maneirase nobres sentimentos — estejamos certos de um equívoco, de umafraude ou de uma confusão de endereço. Reside a dois passos, mas éa falsa vizinha, a antivizinha, sem nada de machadiano. Fiz estabreve introdução para concluir: — tenho, na minha rua, umasenhora que é a vizinha perfeita, irretocável.Está sempre na janela.
Eis aí um costume típico. Como sesabe, a janela foi a televisão das gerações passadas. Hoje, tudomudou. Há pessoas que passam anos e não usam a janela nem paracuspir. Resumindo: — a janela só existe e sobrevive nas letras doChico Buarque de Holanda. Mas onde é que eu estava? Ah, navizinha gorda, a quem chamam de "Moby Dick", a baleia. E a santasenhora, instalada no seu primeiro andar, toma conta de tudo e de todos. Vê quem chega, quem parte, quem namora e quem prevarica.
Ontem, ao sair de casa, quem vejo eu? A vizinha. Quaseatravessei a rua. Mas já a vizinha crispava no meu braço a sua mãopequena e voraz de gorda. Não tive outro remédio senão parar.Agrediu-me com a pergunta: — "O que me diz do Festival?". Não melembro se disse "Gostei" ou "Não gostei". Agora me lembro. Minharesposta foi exatamente esta: — "Mais ou menos". Só. Porcoincidência, também ela achara "mais ou menos". Vendo, ali, umasimilitude de gosto, de sentimentos, vibrou a vizinha. Conversamosuns quinze minutos. E, por fim, quando me despedi, ela fez mistério,fez suspense. Disse, sem desfitar-me: — "Nada como um dia depoisdo outro".
Aquilo ficou na minha cabeça. "Nada como um dia depois dooutro." Só uma vizinha gorda diria isso. Sim, a frase era um achadode vizinha gorda, patusca e cheia de varizes. Mas como ia dizendo: —despedi-me e, em seguida, apanhei o táxi. Vim para a cidaderessoante do "Nada como um dia depois do outro". E, então, penseino Festival. Em São Paulo, quando se escolheu a música paulista, osfanáticos de Vandré promoviam uma apoteose para o seu ídolo e, aomesmo tempo, massacravam a música de Caetano Veloso. E não só amassacravam, como também massacravam o autor.
Se vocês assistiram ao teipe da Paulista, hão de se lembrar.Pela primeira vez viu-se uma pobre canção linchada. A canção, digoeu, e respectivo autor. E mais: — enquanto Caetano Veloso queriacantar, a platéia — sapateando como uma espanhola — fazia umcoro feroz, unânime e obsceno.
Mas o artista deu-lhe o bravo troco.Chamou os jovens ululantes de "imbecis", "analfabetos", "débeismentais" etc. etc. E disse tanto que a obscenidade emudeceu. Ocomportamento de tal platéia — e toda ela "festiva" — foi de umaindignidade inédita. Vejam como cabe, aqui, o "Nada como um diadepois do outro" da minha vizinha. No Rio, novamente, apoteosepara Vandré e vaia para "Sabiá". Em São Paulo, porém, o "Proibido" foi realmente proibido pela platéia, e saiu do Festival. Aqui, ovaiadíssimo "Sabiá" ganhou e vai representar o Brasil.Mas o que ainda me assombra é o poder de promoção da"festiva". O povo acha graça e vamos e venhamos: — o simples nomede "festiva" é um apelo ao ridículo. Realmente, há o ridículo, semprejuízo, todavia, do gênio promocional das esquerdas. O leitor nãotem noção do que sejam os bastidores da glória, do sucesso, daconsagração. Hoje, só se é poeta, romancista, sociólogo, crítico,cineasta, se as esquerdas o permitirem. Cabe então a pergunta: — epor quê? Vejamos.
Porque a "festiva" infiltrou-se nas redações, nas rádios, nasTVS. Há um escritor que não escreve, não lê, não pensa? Outro que écineasta inédito? E outro ainda um romancista que não fez, nem farájamais um romance? Como desfilam em passeatas e xingam osEstados Unidos — são grandes sociólogos, cineastas, romancistas epoetas. E há o caso de Gilberto Freyre.
As esquerdas o abominam. Por que, não se sabe, ou, por outra,sabe-se perfeitamente. Gilberto Freyre é um homem livre. Pensa,vejam vocês e pasmem: — pensa. Pois bem. Até outro dia era, navida intelectual do Brasil, uma presença enorme, obrigatória,obsessiva. Lembro-me de que, certa vez, as grandes figuras literáriasdo Brasil propunham que ele fosse o nosso candidato ao prêmioNobel. E, súbito, desaba sobre o seu nome e sua obra um vil silêncio.É solidamente ignorado pelos nossos jornais. Não há mais notícia,nem reportagem, nem crônica, nem artigo sobre Gilberto Freyre.Acabou? Morreu? Deixou de pensar, ler, escrever? Não, mil vezesnão.
Simplesmente, não aceitou a pressão das esquerdas. E estas,que têm a posse de todos os meios de promoção, não falam emGilberto Freyre, negam-lhe uma notícia de duas linhas ou uma vagareferência. Bem. Volto ao Festival. Vejam vocês: — a "festiva", com oseu horror ao risco, não deu um tiro em 31 de março, não matou um passarinho em 1º de abril. E nem vai mover uma palha ou tirar umacadeira do lugar. Mas só se tem talento com a sua licença.
E, domingo, no Maracanãzinho, as esquerdas caíram do cavalo.Esperavam o primeiro prêmio para Vandré e quem ganhou foi"Sabiá". Entre parênteses, não nego o talento de Vandré. Sua"Marselhesa" nada tem de "Marselhesa" e, pelo contrário, soa comoberceuse e o próprio autor a canta como tal. Mas, berceuse ou"Marselhesa", há talento. E o resultado doeu na "festiva". Logo, comaquela sua coragem sem risco, saiu pelas redações, rádios e TVS. Onosso Vandré teve uma imprensa que nem Rui, nem o barão do RioBranco, nem Santos Dumont mereceram. Mas era pouco. A glóriaimpressa era pouco.
E que fizeram elas, as esquerdas? Vejam que golpe bemimaginado. Na terça-feira, em jornais, rádios e TVS, largaram abomba: — Tom e Chico iam renunciar. Nada descreve o meuespanto. O prêmio, se não me engano, é de 25 milhões. Vinte e cincomilhões — o brasileiro não é assim. Mesmo o nosso milionário não éassim. Um dia, o Walther Moreira Salles ganhou um prêmio menorno "Seu Talão". Pois meteu-se na fila e foi buscar o dinheiro. Por que,e a troco de que, Tom e Chico iam enfiar no bolso de Vandré os 25milhões? O Chico não está presente. E, se o Tom aceitasse a coaçãosentimental e realmente idiota, estaria merecendo um urgentetratamento psiquiátrico. Sim, e nós o amarraríamos num pé de mesae lhe daríamos água numa cuia de queijo Palmira.
[3/10/1968]
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...