Fala-se em "Poder Jovem", na "Jovem Revolução" e um padre de passeata,em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de "a mãe do JovemSalvador". Vejam: — é tão importante ser jovem que já se providenciou umaidade promocional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da idade.Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, eque façam o mundo à sua imagem e semelhança.
Ameu ver, porém, chegou a hora de se falar também da "jovem obtusidade".Que ela existe como uma realidade concreta, que se pode apalpar, farejar, nãohá dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se mepedirem fatos, eu direi: — "Vamos aos fatos".
Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que serefere ao frio em termos de "julgamento moral". Quando a aragem vai gelandoos edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar: — "Ah, frio canalha! Ah, frioindecente!". Para a sua indignação, o frio era "torpe", era "obsceno", era"sórdido". Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta,pessoal e crudelíssima. Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar oteipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um banguebangue.
Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia.Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, sómocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era umapaisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovensficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para ofilho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.
Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer umaplástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc.etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meiaidade,uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem coroa eocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Imaginei que estaria, ali, amelhor juventude paulista.
E era de um óbvio escandaloso a politização dos presentes. Sempre que umaletra fazia uma insinuação política, ou tinha um arroubo ideológico, ou rosnavapara os Estados Unidos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram asmeninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos ebatendo com os saltos, um no outro. Ninguém sabia se estava aplaudindo ouvaiando. Ah, os rapazes, os rapazes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadascomo rútilos centauros.
Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De umaltíssimo patético foi a aparição do sr. Caetano Veloso. Ah, esquecia-me deVandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo,de uma ironia finíssima: — "Pra não dizer que não falei de flores". E, realmente,para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo contra as flores. Até hoje ainda nãosei o que é que o nosso libertário propõe. Vejamos algumas hipóteses: — quereráele dizer que a "Grande Revolução" vai acabar com as flores? Ou que só aburguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que orevolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor semchutá-la?
Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamenteinescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o perceba, taismetáforas são absolutamente contra-revolucionárias.
Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam jáme deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade queele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De perucaou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foiuma monstruosa vaia. Amenina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, emdelírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar. Masos jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velhasolenidade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, aguarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Nãome admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetasno meio da rua.
Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Veloso. Ninguém reagemelhor do que ele mesmo. Quis cantar e esmagaram seu canto. Amassa coralrepetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de umartista, um desesperado artista que se propunha a cantar o "É proibido proibir".
A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraísosocialista. Já nenhum telespectador suportava mais a humilhação, que setransferia para as casas. (E a jovem massa insistia no refrão torpe). Súbito, osbrios de Caetano Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali. Elecomeçou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nostrajes mais impróprios para o seu rompante.
Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades queestavam mudas, sim, as verdades que precisavam ser ditas — urgentes,inadiáveis e santas verdades. Ainda bem que milhões de telespectadores asouviram. Se bem me lembro, eis as suas palavras: — "É isso a juventude? Evocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendemnada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendemde música, desgraçado Brasil!".
Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Velosocomparou, e com exemplar justiça, as duas vergonhas: — a vaia obscena e ainvasão do Teatro Ruth Escobar. Naquela ocasião, depois do espetáculo de Rodaviva,uns quarenta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou:— "Estou grávida!". Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor donosso Vandré. E dizia Caetano Veloso: — "Vocês não são melhores! Sãoiguaizinhos!".
Os idiotas da objetividade hão de perguntar: — "E a peruca? E as plumas? E obatom? E o salto alto?". Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignaçãoà Zola. Quando morreu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo: —"Zola foi um momento da consciência humana". No teipe de sábado tivemos,pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimoscomo a sua implacável lucidez acuou e bateu a "jovem obtusidade".
[26/9/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...