CAMBALHOTAS DO OTTO

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Como bebem as esquerdas! Era uma sexta-feira e eu fui aoAntonio's. Hoje, o verdadeiro sábado é a sexta-feira. E, ainda outrodia, dizia-me um pau-d'água grã-fino: — "Não há mais sábados, nemhá mais domingos". Depois de mutilar a semana, concluiu, com oolho parado do bêbedo: — "Sexta-feira é o dia em que a virtudeprevarica". 

"A virtude prevarica" já era o efeito literário, a frase elaboradaainda na lucidez. Seja como for, a esquerda escolhe a sexta-feirapara modular seus palavrões e babar seus pileques. Não sei se emtoda parte e em todos os idiomas acontece o mesmo. No Brasil ou,mais precisamente, no Leblon, as esquerdas são pornográficas com amaior efusão e abundância.

 Mas por que escolhi o Antonio's e não, por exemplo, o Nino ouo Bateau, ou outro qualquer? Porque só o Antonio's tem a função e odestino do boteco ideológico. Repito: — sem o Antonio's, oesquerdista não estará completa e definitivamente equipado. É lá queele vai ensaiar o seu gesto, exercitar sua ênfase, empostar sua voz eesculpir suas caras.

 Justiça se lhes faça: — são as esquerdas mais plásticas domundo. Fazem caras, e gesticulam, e saltam, e sapateiam, eatropelam, e cavalgam as cadeiras, e trepam nas mesas. Eis o que euqueria dizer: — vale a pena atravessar três desertos para vê-las. Alémdisso, tinha eu um outro motivo, de natureza sentimental, para ir aoAntonio's. Era a esperança de lá encontrar o meu amigo Otto LaraResende. O Otto estava no Rio, ou por outra: — esteve, porque jávoltou para Lisboa.

 E o meu amigo, de um lado, e as esquerdas, de outro, fizeramda última sexta-feira uma noite inesquecível. Aqui, abro umparêntese para falar do Otto. Ele apareceu tarde da noite e logo sentique vivia um grande momento. Sem se atrelar às esquerdas, está àvontade no Antonio's como um peixinho no seu aquário natal.Mesmo porque os donos, os empregados e os fregueses o tratam napalma da mão. No Brasil, ninguém é mais doutor. O único doutorque ainda se conhece, na vida real, é o dr. Britto, do Jornal do Brasil.Pois bem: o Otto é doutor para todos os garçons do Antonio's. 

E há pior: — lá, ele jamais consegue pagar uma única e míseradespesa. A casa não aceita um tostão do meu amigo. Mas Ottochegou e alguém, jamais identificado, enfiou-lhe na mão uma garrafade champanha. Não pensou duas vezes. Fez saltar a rolha e bebeupelo gargalo. Eis a cena que arrancou aplausos até dos maisapáticos: — essa do Otto beber champanha pelo gargalo.

 Nem se pense que parou aí. Contou anedotas. Fez piruetascomo o acrobata que testa a própria elasticidade antes dacambalhota suprema. Imaginem que, certa vez, confidenciara a umamigo: — "Eu sou a Idade Média". A partir de então, os íntimospassaram a chamá-lo assim. Sábado, o Hélio Pellegrino batia otelefone para mim e perguntava: — "Viste a Idade Média?". E eumesmo, falando com Waldomiro Autran Dourado, dizia-lhes: — "Voume encontrar com a Idade Média". E, no entanto, o Otto de sextafeira, no Antonio's, era muito mais a belle époque do que a IdadeMédia. Ao tomar champanha pelo gargalo, era a belle époque queirrompia, de repente, ali no Leblon. Uma euforia datada do princípiodo século e, repito, anterior à primeira batalha do Marne. Só faltoubeber champanha no sapato de uma cocote.

 E, por toda uma noite, o Otto foi a ex-Idade Média. Nestemomento fecho o parêntese sobre o amigo e volto às esquerdas. Atéaqui tenho pluralizado; e, daqui por diante, vou dar-lhes o nomesingular, e mais autêntico, de "a festiva". Dizia eu, no início do capítulo, que "a festiva" bebe. Esqueci-me, porém, de acrescentar apergunta: e por que bebe? Sim, por que bebem as esquerdas? 

Domingo, fui passear com o Hélio Pellegrino e acabamos noparque Laje. A luz dourava a aragem muito leve. E, súbito, não sei seeu, ou Hélio, disse ao outro: — "O parque Laje é o anti-Antonio's!".Em seguida levamos tal descoberta às suas últimas conseqüências.Aquele domingo, de um azul jamais concebido, também era o antiAntonio's. E a cidade, e as esquinas, a gente, e o próprio Leblon,tudo era o anti-Antonio's. 

Não exagero. Dizia-me o Pellegrino: — "O Rio é a cidade maisalegre do mundo". Ele falava de uma alegria absurda e total.Segundo o Otto, até os nossos esgotos, os nossos ralos, são umfestival de ratazanas. E o Antonio's é a antifesta. Suas mesas, suastoalhas, seus bifes, estão embebidos de tristeza. Cabe então apergunta: — por quê?

 Tentarei explicar. Não é uma tristeza própria, mas adquirida.Repito: adquirida das nossas esquerdas. Estas vão para lá exalarsuas cavas depressões. Claro que há três ou quatro melancoliasauxiliares de grã-finos errantes na madrugada. Todavia, a tristezafundamental se evola da "festiva". 

E, por isso, porque são tristes, as esquerdas bebem. Pouco apouco, o álcool vai desatando não sei que euforias misteriosas efrenéticas. Em seu estado normal, e enquanto sóbria, a "festiva" nãoé festiva. Tem que, primeiro, encharcar-se. Depois, então, cada umdos seus membros torna-se um ser maravilhosamente plástico,elástico, luminoso. É capaz de virar cambalhotas inexcedíveis; e deequilibrar laranjas no focinho; e de ventar fogo por todas as narinas. 

Alguém poderia perguntar: — e por que "a festiva" é triste?Vejamos. O homem comum fica triste quando se lembra que morre.E a "festiva" bebe porque há de morrer um dia? Não. Nenhum perigoa ameaça. Há o Vietnã. E as esquerdas quando falam da guerralongínqua têm rompantes ferozes. Mas o Vietnã está lá e nós aqui.

 Há uma sábia distância entre os heróis do Leblon e o perigo.

 E, assim, sem arredar pé do Antonio's, a "festiva" chegará aossetenta, oitenta e, eu diria mesmo, noventa anos. Saí do Antonio's,no fim da madrugada. Lá ficaram as esquerdas, babando o seupileque e arrotando os últimos palavrões.

 [30/1/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora