Disse não sei quem que os homens se dividem em dois grupos:— "assassinos" e "assassinados". Ou o sujeito mata ou, se não mata,morre. Portanto, segundo esse autor, cujo nome não me ocorre, nãohá hipótese de morte natural. Mesmo os "assassinos" são, por suavez, "assassinados". Por isso, o francês Paul Valéry chegou aimaginar, para si mesmo, o seguinte epitáfio: "Aqui jaz Paul Valéry —assassinado pelos outros".
Houve, porém, um momento, na minha vida, em que "todos"eram assassinos. Foi quando morreu meu irmão Roberto. RobertoRodrigues. Não sei se me entendem. O que eu quero dizer é que"todos" eram assassinos, e Roberto, a única vítima. Foi ferido no dia26 de dezembro de 1929. Ele conversava comigo. Uma voz pediu: —"Pode-me dar um minuto de atenção?". Era na redação de Crítica. Ospassos caminharam até à sala seguinte. Porta de vaivém. Roberto faza volta da mesa e caminha para lá.
Por minha vez, encaminho-me para a escada. Ia tomar umrefresco no botequim da esquina. Paro com o estampido. Houve umapausa entre o tiro e o grito (e foi um grito de quem vai morrer). Umdos presentes era o detetive Garcia. Com seu reflexo profissional,tirou o revólver; e foi de arma em punho que invadiu a sala da frente.Roberto está de joelhos, com as duas mãos agarrando a mão que oferira.
Da serraria do lado, os operários subiam a velha escada gastade muitas gerações. Roberto tinha 23 anos, era o homem mais bonitoque vi até hoje. Uma bala interrompeu, para sempre, a obra queamadurecia na sua alma atormentada. Levado para o pronto-socorro, lá morreu dois dias depois. Eu continuava a ouvir a voz: — "Vimmatar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos". Paro de escrever. Avoz está dizendo, como há 39 anos atrás: — "Mário Rodrigues ou umdos seus filhos".
A redação armada em câmara-ardente. Eu, com dezesseteanos, era abraçado. Um velho agarrou-se a mim: — "O nossoRoberto". E eu tinha pena, vergonha, remorso de estar vivo. Muitosanos depois, na minha peça Anjo negro, há esta imagem: "No enterrosobra sempre uma flor. Uma flor fica boiando no soalho". E, de fato,naquele dia, eu vi uma flor boiando no soa-lho. Não sei se alguém apisou. Passei toda uma madrugada velando o sono dos círios.
O último a se despedir de Roberto foi meu pai. "Eu te vingo!",soluçou. No fim, chegou Melo Viana, o vice-presidente da República.Abraçou-se a meu pai, que repetiu: — "Essa bala era para mim". E,depois, o enterro saindo. Era uma manhã de tanto céu que a própriasombra era azulada, lunar. Dois meses depois, morria meu pai. Suaagonia durou quinze dias. Morávamos numa colina. E, na últimanoite, da esquina já se ouvia a sua dispnéia. Morreu tão órfão dopróprio filho.
Eis o que aprendi com Roberto e meu pai: — o importante énão matar. Nada mais doce do que nascer, viver, envelhecer emorrer. E não ser jamais assassino. Nunca me esqueço do queaconteceu com um dos meus amigos. Gostou de uma menina e, nofinal da tarde, os dois passeavam, na praça Saenz Peña, de mãosdadas. Um dia, a menina crispa a mão no braço do bem-amado; diz:— "Olha Fulano". Fulano era o ex-namorado da garota, umbrutamontes, que aprendia judô, caratê etc. etc. E, segundo se dizia,estava esperando, para qualquer momento, o seu primeiro ataqueepilético. O ex-namorado barrou-lhe a passagem; abotoa o meuamigo: — "Quando se encontrar comigo... Cala a boca. Quando seencontrar comigo, atravesse a rua. Ou lhe parto a cara". O ofendido,branco, não disse uma palavra. E o outro: — "Agora, suma. Ande. Suma". O rapaz baixou a cabeça e correu.
De noite, a moça liga para ele, aos soluços. Quase não podiafalar. O humilhado, o ofendido, só dizia: — "Calma, meu bem,calma". Por fim, mais controlada, disse tudo: — "Você vai-me fazerum favor. Vai dar um tiro nesse miserável". Num espanto aterrado,ele balbuciou: — "Tiro, eu? Meu bem. Eu não sou de dar tiros". E aoutra: — "Quer dizer que você é covarde?". Respondeu: — "Não sei sesou covarde. Assassino, não sou". Ela esganiçou-se no telefone: —"Escuta! Escuta! Na próxima vez, ele vai-te dar na cara. E você vaiapanhar calado?". Disse, manso como um santo: — "É mais forte doque eu. Não posso brigar fisicamente. Apanho, mas não mato. Nadame fará matar!". Romperam no telefone. E a menina acabou voltandopara o ex-namorado.
Eu compreendo tanto os que não matam. Gostaria de explicar.Quando matam alguém, é como se Roberto estivesse morrendo outravez. Foi assim com o primeiro dos Kennedy. Uma bala arrancou seuqueixo plástico, crispado, vital. Então senti como se fosse Roberto,novamente Roberto. E, por um momento, tive a ilusão de que, doismeses depois, meu pai morreria também, como em 1930. E assim,quando balearam o outro Kennedy, Bobby. E onde quer que alguémseja assassinado por alguém — cria-se entre mim e o que morreuuma relação obsessiva, implacável.
Há dias, trucidaram, em Pernambuco, o jovem padre AntônioHenrique Pereira Neto. Até o momento em que bato estas notas, nãose sabe quem matou e por que matou. Segundo o comunicado daarquidiocese de Olinda e Recife, o padre Antônio Henrique, além desofrer uma série de sevícias hediondas, foi amarrado e enforcado. Emseguida, vararam de balas o cadáver. Começam então as hipótesesdesesperadas. Autoridades policiais do Recife acham que se trata deum crime passional. Ao passo que autoridades eclesiásticas afirmamque foi "crime político". Mas "passional" ou "político", o que importa éa hediondez do fato. Dizia aquele personagem dostoievskiano: — "Se Deus não existe, tudo é permitido".
Para muitos brasileiros, Deus está morto. E para esses, para os"assassinos de Deus", tudo é permitido. Que limites, dúvidas,arrependimentos poderão travar os "cristãos-marxistas", os "cristãossem vida eterna", os "cristãos-sem sobrenatural", os "cristãos-semCristo"? Falei da "esquerda católica". Um dia, ela terá de ser julgada.Na confissão de ontem, falei de um dos pronunciamentos mais clarosde d. Hélder. Sem nenhum disfarce, declara: — "Respeito aquelesque, em consciência, sentem-se obrigados a optar pela violência; nãoa violência fácil dos guerrilheiros de salão, mas a daqueles queprovaram sua sinceridade com o sacrifício de suas vidas". Não. Aínão está dito tudo. Provaram a sinceridade morrendo, por azar, ematando, por querer. Antes de morrer, Guevara matou. E, repito,morreu sem querer e matou querendo. Também Camilo Torres. Essecristão-homicida empunhou o fuzil, não para morrer, mas paramatar.
E diz mais o arcebispo de Olinda e Recife: — "Parece-me que asmemórias de Camilo Torres e de Che Guevara merecem tantorespeito quanto as do pastor Martin Luther King". Não, mil vezesnão! Luther King não morreu de fuzil, faca ou revólver na mão, comoGuevara ou Camilo Torres. Não matou, nem quis matar. Não pregouo ódio, a "violência justificada" católica. Morreu de amor e por amor.Os que pregam o ódio não podem chorar o jovem sacerdote do Recife.
Todos nós temos um projeto de Brasil. O da esquerda católica éo Brasil do ódio. O Brasil do sangue, o anti-Brasil, um Brasil semDeus. Este país não teve jamais um drácula. E, súbito, os possessosquerem que nos transformemos em 80 milhões de dráculas bebendoo sangue uns dos outros.
[17/6/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...