O PAULISTA

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Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone. Atendo: —era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: — "Como vai? Há quantotempo!". E, de fato, não nos víamos há uns três anos. Ou mais.Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão pouco aSão Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro vezes. Só.E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos. Creioque de ambos. 

Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não meengano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil xTchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos juntos,ou por outra: — só me lembro da minha torcida. A dele apagou-secompletamente na minha memória. Do Pacaembu saímos parajantar. Jantamos. E já me pergunto: — será que jantamos mesmo?Sei lá. Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Faziaum frio tão feroz — era junho — que, em dado momento, tive vontadede chorar, sentado no meio-fio. 

O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito.Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subvencionou tudo. Efez questão de me levar no trem. Desembarquei no Rio e me saturei,até os sapatos, de vida carioca. Passa-se o tempo e, de vez emquando, me lembrava do paulista. Via com a maior nitidez a suacara, o terno, a camisa, e nada mais. Lembrava-me, sim, do seupigarro. Mas não me ficara de nossa convivência uma palavra, umafrase, um "boa-noite", um "adeus". Cheguei a pensar que, em minhapassagem por São Paulo, ou eu era surdo ou ele mudo. Mas claroque se tratava de uma ilusão auditiva: — até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar palavrões etc.etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro. 

Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, maisdo que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei,patético: — "Você não imagina a minha alegria". Quis saber: —"Quanto tempo vai passar aqui?". Resposta: — "Dois dias". Ao sair dotelefone, juntei ao pigarro mais umas quinze palavras. Vejam bem: —quinze palavras e um pigarro tinham, para mim, quase que aabundância de uma ópera. 

Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor.Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte, fomosao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. Demanhã, compareci ao aeroporto. Perguntei-lhe: — "Até quando?".Teve um sorriso inescrutável e não disse uma palavra. Por fim,tomou o avião e partiu. Vim embora e aqui começa a minha trágicaperplexidade: — eu voltava à mesma situação. O outro era umpaulista fino, inteligente, um homem de sensibilidade, deimaginação. Há momentos em que o mais incomunicável dos homenstem que fazer uma confidencia. Ou faz uma confidência ou morre.

 E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera nenhumaconfidência. A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de silêncio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então, aconteceuesta coisa vagamente alucinatória: — éramos dois silêncios queandavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam,fumavam e se entreolhavam. Deu-me, por vezes, a vontade de ouvirlhe o som do pigarro. Se não tinha o que dizer, podia dar-me aesmola auditiva de um pigarro. Por imitação inconsciente, eu ia-metornando paulista também. 

Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeirabuzina que ouvi deu-me uma desesperada euforia. Pensei: — "Aomenos as buzinas falam!". Entrei na redação e fui adiantar serviço.Passei dez minutos diante da máquina. Mas não me ocorria absolutamente nada. O papel estava na máquina, branco, virginal.Acabei decidindo: — "Vou escrever sobre o kaiser". Mas quandocomecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: — "A pior forma desolidão é a companhia de um paulista". Reli, honestamenteespantado. A coisa nascera sem nenhuma elaboração prévia.Continuei a escrever. Expliquei a verdade, isto é, que a frase meescapara sem querer. E fiz toda uma crônica sobre o kaiser. 

Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. ClôPrado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: — "Comoé verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!". Nessamesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidadosachou que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadualinapelável e eterna. Já no fim da madrugada, uma terceira pessoame levou para os fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi,perto da piscina, que conversamos. 

Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que opaulista é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidávelsuperioridade sobre todos os outros brasileiros. E o que explica aepopéia industrial de São Paulo é a solidão. Realmente, o paulista écapaz de viver, amar, envelhecer sem fazer jamais uma confidência,nem ao médium depois de morto. Os demais brasileiros sãoextrovertidos ululantes, está certo. Mas não fazem o Brasil. O únicoque faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é São Paulo. Fiz-lhe apergunta: — "O senhor é paulista?". Era. 

Todos os autores têm suas três ou quatro frases bemsucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vidaprópria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo doautor, mais do que as obras completas do autor. Imaginem que a dasolidão paulista ainda me rende bons dividendos. Ontem, porexemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era uma voz fininha decriança que baixa em centro espírita. Veio a pergunta: "Seu Nelson?".E eu: — "Pois não". 

Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquieto.Continua: — "Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor escreveu". Eunão digo nada ou, melhor, digo: — "Ah, sim, sim". Evidentemente,era a frase. Pergunto: — "A senhora concorda ou não?". E a voz deanjo defunto: — "Foi a maior verdade que o senhor já disse na suavida. O senhor é paulista?". Quase pedi desculpas de serpernambucano. Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: —oitenta. Era paulista há oitenta anos. Casada desde os quinze, viveracom o marido, outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, nãosei onde. E passavam dias, semanas, meses de silêncio total. Muitasvezes, ela já não se lembrava de como era a voz do marido e chegavaa esquecer a própria. E a velhinha me perguntou: — "O senhoracredita se eu lhe disser que enterrei meu marido na semanapassada?". Acreditei. Em mais de meio século de coabitação, nem lheconhecera o gemido, o simples gemido. Um ficava escutando osilêncio do outro. Ele agonizara sem gemer. E, depois, lá foi ela paraa capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido. 

[7/8/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora