AS DUAS CABEÇAS

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Sou um profissional de velhas gerações. Mas a "jovemrevolução" está aí. E quero crer que, em futuro bem próximo, eu e oCarlos Tavares seremos dirigidos pelas estagiárias do Jornal doBrasil. Imaginem vocês uma imprensa de meninas. E a redação seráuma paisagem de bordados, de tapete, com ninfas, ou sílfides, sei lá,bebendo em cascatas artificiais. 

Fiz este comentário parnasiano e já mudo de tom. Eis o que euqueria dizer: — três vezes por semana, sou atropelado por umaestagiária. É uma fatalidade. Não atendo telefone, fujo, não estou,não volto mais. Mas a estagiária é invencível. Acaba por medescobrir, e nas horas e locais os mais surpreendentes. Outras vezessou eu próprio que, por fraqueza de caráter, ou por indulgência develho, as atendo. Foi o que aconteceu ontem.

 Bateu o telefone e o contínuo me avisa: — Jornal do Brasil.Tinha de ser uma estagiária. Eu podia ter dito como de outras vezes:— "Não estou" ou "Estou no café". Mas ontem era um dia excepcionale crudelíssimo. Pela manhã, o jornaleiro me assombrou: — "MataramKennedy". Por um momento, não soube o que pensar, o que dizer.Quase perguntei: — "Outra vez?". Os dois fatos estavam justapostosna minha cabeça: — Bob e John. Eu já não sabia se eram dois ouum só. Se era o presidente que morria novamente, e não mais noTexas, agora em Los Angeles. O jornaleiro, numa gloriosa excitação,arqueja: — "O rádio está dando! O rádio está dando!". 

Não era ainda a morte. Bob Kennedy apenas agonizava. Talveznão morresse. Vim para a cidade já desesperado. E, no Centro, fuiouvindo por toda a parte: — "Um tiro na cabeça". Se fosse no coração, ninguém diria "um tiro no coração". Mas o assassino de umKennedy e o assassino do outro Kennedy quiseram a cabeça. Vocêsentendem? Quiseram estourar o cérebro. Como se o morto, apenasferido no peito, continuasse pensando, morto e pensando, cadáver epensando, enterrado e pensando, eternamente.

 Portanto, era preciso parar a cabeça. Foi assim no Texas. Derepente, Jacqueline viu, a seu lado, um marido sem queixo. Opresidente era, sobretudo, o queixo forte, crispado, vital. E, agora,em Los Angeles, num hotel vagabundo (não seria hotel vagabundo.Mas a minha visão do crime exige o lívido corredor de um hotelvagabundo), um jovem jordaniano atira muitas vezes. E Bob Kennedyhá de ter sentido, antes do medo, o espanto. No corredor, houve umaconstelação de estampidos. Foi, como queria o assassino, uma balana cabeça.

 Não sei por que estou repetindo o que todas as primeiraspáginas já disseram e repisaram. Venho para a redação e souchamado pelo Jornal do Brasil. De fato, era uma estagiária. Entreparênteses, acontece, entre mim e o velho órgão, uma coisasingularíssima. Quase todos os dias uma estagiária me entrevista.No dia seguinte: — não sai a entrevista. É espantoso, mas exato. Nãosai, nem a tiro. Eu opino sobre tudo, desde o Zé da Ilha no barraco,ao arquiduque da Áustria em Sarajevo. E a minha opinião nãoaparece. Digo as coisas mais ousadas, certo de que ficarão parasempre inéditas. 

Naturalmente, o Jornal do Brasil havia de querer o meu pontode vista sobre o crime. (E, decerto, como das outras vezes, nãopublicaria uma linha.) Muito bem. Sento-me e apanho o telefone."Alô", digo. Uma voz feminina pergunta: — "Nelson Rodrigues?". Soueu, sim. Há situações em que um homem, qualquer um, passa a serum momento da consciência humana. Ao telefone, eu me sentia,exatamente, esse momento da consciência humana. Já imaginavauma frase. Ia dizer que todos os males pessoais e coletivos têm uma origem obrigatória: — o desenvolvimento.

 O curioso é que responderia antes da pergunta; e diria então:— "A civilização é responsável por mais este crime que...". Mas nãocheguei a falar. A estagiária falou antes: — "Nelson Rodrigues, euqueria a sua opinião sobre...". Esperei ouvir o nome do Kennedy. Amenina continuou: — "Sua opinião sobre o jogo Vasco x Botafogo".Estou trêmulo de espanto. Insiste, risonhamente: — "Qual é seupalpite?". Estou calado: — "Também queria um palpite seu sobreFlamengo x Bonsucesso, Fluminense x América" etc. etc.

 Dei-lhe os palpites pedidos, que o Jornal do Brasil não vaipublicar, absolutamente. Saí do telefone humilhado e ofendido.Pensava no dia em que eu e o Carlos Tavares estaremos sob asordens das estagiárias. Bem, agora tentarei resumir o que não disseà jovem do Segundo Caderno. Vamos lá. 

Há pouco tempo, vi um sacerdote afirmar com a ênfase de umamanchete: — "Paz é desenvolvimento". O sacerdote falava com acerteza forte de um Moisés de Cecil B. de Mille. Disse "Paz édesenvolvimento" e acrescentou-lhe um patético ponto deexclamação. Eis o que eu diria à estagiária: — "Aí está uma opiniãofalsamente acaciana". Parece o óbvio, mas nunca foi e nunca será oóbvio.

 Repito: — é o falso Acácio e o falso óbvio. Justa será a verdadeinversa: — "O desenvolvimento não é a paz". Ou: — "Odesenvolvimento é a guerra" ou, ainda, "O desenvolvimento criou aantipessoa". A estagiária não se espantaria, porque as estagiárias sãoinsuscetíveis de espanto. E eu diria mais: — "O desenvolvimento é aagressividade, a angústia, a mania de grandeza, o ódio e, ainda, aguerra interna e externa, a mania homicida, o inferno sexual, amorte da alma". 

As duas nações mais desenvolvidas do mundo, os EstadosUnidos e a Rússia, estão sempre a um passo da guerra nuclear.Dizem, até, que um equívoco pode liquidar a vida e o homem. Falam da Suécia. Mas a Suécia é uma festa de suicidas. Na melhor dashipóteses o desenvolvimento é o tédio mortal. Agora, matam osegundo Kennedy. Dirá alguém que na Rússia não há crime político.Ao que eu responderia: — só há crime político. Nos EUA, qualquer ummata. E, por trás da Cortina de Ferro, só o Estado mata. Só o Estadoé assassino. Mas o que importa notar é a brutal solidão do homemdesenvolvido. A feroz infelicidade. E as lesões de sentimento. E astrevas interiores que ninguém pode desafiar em vão. Não sei quemdisse, ou talvez ninguém tenha dito: — "O desenvolvimento é odemônio".

 [7/6/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora