De vez em quando, alguém me chama de "flor de obsessão".Não protesto, e explico: — não faço nenhum mistério dos meusdefeitos. Eu os tenho e os prezo (estou usando os pronomes como oOtto Lara Resende na sua fase lisboeta). Sou um obsessivo. E, aliás,que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatroidéias fixas? Repito: — não há santo, herói, gênio ou pulha semidéias fixas.
Só os imbecis não as têm. Não sei por que estou dizendo isto.Ah, já sei. É o seguinte: — recebo a carta de uma leitora. Leio e releioe sinto a irritação feminina. E, justamente, a leitora me atribui aidéia fixa do "umbigo". Em seguida, acrescenta: — "Isso é mórbido ouo senhor não desconfia que isso é mórbido?". Corretíssima aobservação. Realmente, jamais neguei a cota de morbidez que Deusme deu.
A minha morbidez. Ela me persegue e, repito, ela me atropeladesde os três anos de idade. Eu ainda usava camisinha de pagãoacima do umbigo. E, um dia, na rua Alegre, apareceram quatro cegose um guia. Juntaram-se na esquina, na calçada da farmácia, etocaram violino. Três anos. Quando os cegos partiram, caí de cama.Debaixo dos lençóis, tiritava de tristeza, como de malária. A partir deentão, sou um fascinado pelos cegos.
Ainda na infância, eu fechava os olhos e, dentro de minhaspróprias trevas, me imaginava cego. Claro que tudo isso é morbidez.Eis o que eu queria dizer à minha leitora: — infelizmente, não tenhonem a saúde física, nem a saúde mental de uma vaca premiada. Nasua irritação, ela continua: — "Bem se vê que o senhor é um velho". E, de fato, sou tão velho quanto o Antônio Houaiss.
Por coincidência, almocei, ontem, com o já referido AntônioHouaiss, o Francisco Pedro do Coutto e o José Lino Grünewald.(Vejam como Grünewald é um nome naval, sim, o nome de umprimeiro-tenente morto no afundamento do Bismarck.) Durante oalmoço, o Antônio Houaiss batia na tecla fatal: — "A minha geração éa do Nelson". E dizia ao José Lino e ao Coutto: — "Vocês que sãobrotos". E, pouco a pouco, eu e o próprio Houaiss íamos ficandolívidos de idade, amarelos de velhice, espectrais como a primeirabatalha do Marne ou como o fuzilamento de Mata-Hari.
Depois do almoço, volto para a redação e vejo a carta da leitora.Lá está a mesma e crudelíssima acusação de velhice. Cabe então apergunta: — e por que me chama de velho? Resposta: — porqueainda me impressionam os umbigos do biquíni, do sarongue, dosbailes. E, sem querer, a leitora toca num dos mistérios maispatéticos da nossa época. Os jovens não estão interessados na nudezfeminina. Essa rapaziada dourada de sol, esses latagões plásticos,elásticos, solidamente belos como havaianos não desejam como asgerações anteriores. Só os velhos é que ainda se voltam, na rua, ouna praia, para ver as belas formas. Quem o diz é a leitora.
Mas o melhor está do meio para o fim. De repente, percebo aorigem da carta e da irritação. A leitora defendia alguém. Eis o caso:— no baile do Municipal, irrompeu um umbigo especialíssimo. Umalindíssima senhora, e, se não me engano, embaixatriz, foifotografada, televisada de sarongue. Mais tarde, os jornais e asrevistas falavam do umbigo diplomático. A imprensa rendia suashomenagens à beleza. Mas a leitora via, nas fotografias e legendas,uma inconfidência visual, quase um ultraje. Parece-lhe que nãoestamos longe do jornalismo de escândalo ou, para usar a cor exata,marrom.
Vejam vocês como os papéis se invertem. Já a televisão foichamada de obscena, porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: — queriam o quê? Que as câmarase os microfones vestissem os nus, calafetassem os umbigos,enfiassem espartilhos nos quadris? Ao mesmo tempo, o Jornal doBrasil deitou um judicioso editorial afirmando que, depois da praia, anudez perdera todo o mistério e todo o suspense. Era assim no Brasile em todo o mundo. Portanto, segundo o velho órgão não há nadaque objetar ao impudor eugênico, salubérrimo e "pra frente" dapraia. E, todavia, o mesmo Jornal do Brasil e no mesmo editorialcondena a televisão que devia ter tapado os quadris, umbigos etc.etc.
Do mesmo modo, o caso da leitora e da embaixatriz. Que umabela senhora ponha um sarongue assim e vá ao baile é um fatointranscendente, normalíssimo. Mas, se um cronista deixa escaparuma referência ao umbigo do Itamaraty, vem o mundo abaixo. E porque, meu Deus do céu? Imoral é a televisão e não os nus frenéticosque vinham posar para as câmaras. Antigamente, havia, em torno deum beijo, todo um sigilo, toda uma solidão. Lembro-me de unsnamorados, na minha infância, que iam para debaixo da escada. E,nos bailes recentes, os casais caçavam as câmaras e iam beijar paramilhões de telespectadores.
Seja como for, algo restou do último Carnaval. Refiro-me aosnus arrependidos. Na própria quarta-feira de Cinzas, cruzei, aochegar em casa, com uma menina da vizinhança. Fora, nos quatrodias, um dos umbigos mais insistentes da televisão. Em qualquercanal, lá estava ele. E, no entanto, enterrado o Carnaval, eu via amenina passar, rente à parede, de cabeça baixa, na sua vergonhatardia e crispada.
A minha leitora, que assume a irada defesa da embaixatriz,também é outro nu arrependido. Diz, a folhas tantas: — "Eu tambémbrinquei no Carnaval". E levando mais longe a sinceridade, confessa:— "Vesti o meu sarongue e não me arrependo". Mentira. Estáarrependida, e insisto: — é um dos nus arrependidos da cidade.
É linda, embora inútil, essa vergonha póstuma. Também asfamílias estão horrorizadas com o nudismo carnavalesco. Fui a umjantar e lá as senhoras diziam: — "Não eram meninas de família.Eram aventureiras". Perdão: vamos dizer a casta e singela verdade:— os nus saíam dos lares. Já escrevi isto e repito, porque é meio viltrapacear com o nosso próprio impudor. Se a cidade se despiu, deveter o nobilíssimo cinismo de o proclamar.
Mas vamos crer que não houve nus em lugar nenhum. Nãoadianta. Para nós não há saída. Por que ter pudor no Carnaval e nãona praia? Aí está o biquíni, que é a forma mais desesperada danudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém querver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e ocrioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plástica nadamisteriosa. E aí começa a expiação da nudez sem amor: — ainconsolável solidão da mulher.
[28/3/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...